Nunca subestime a vida selvagem
Daniel Radcliffe é um ator
interessante. Oriundo do cinema blockbuster, me refiro, obviamente a poderosa
franquia Harry Potter, o versátil ator inglês optou por se afastar
gradativamente do radar do grande público. Na busca por papéis mais
desafiadores, ele decidiu seguir o caminho mais difícil na dura transição da
juventude para a vida adulta, se reafirmando como um realizador maduro em
títulos como o subestimado A Mulher de Preto (2012), o elogiado Versos de um
Crime (2012), o cult Swiss Army Man (2016) e o competente Imperium (2016). Tal
qual outros representantes da sua geração, como Robert Pattinson e Kristen
Stewart, dois atores talentosos que, só no momento em que se distanciaram do
cinema pipoca, tiveram as suas respectivas qualidades reconhecidas, Radcliffe
tem se esforçado para se distanciar do rótulo do “astro teen”, o que fica bem
claro no seu mais recente trabalho, o excruciante Na Selva. Responsável por
elevar o nível do material apresentado, ele impressiona ao traduzir o drama do aventureiro
israelense Yossi Ghinsberg, um jovem destemido que, no início da década de
1980, ficou conhecido por sobreviver durante quase vinte dias sozinho na
opressiva selva amazônica. Por mais que a pesada direção de Greg Mclean reduza
o impacto da obra, principalmente quando o assunto é a construção do drama
entre os personagens, Radcliffe cativa ao encarar esta trágica história real,
se entregando de corpo e alma a uma produção valorosa que cumpre a sua missão
quando se concentra na luta pela sobrevivência.
Infelizmente, porém, Grag Mclean
não pareceu interessado somente em explorar a árdua jornada de Ghinsberg. Embora
o filme cumpra o mais básico (e complicado) requisito do gênero ao levar o set
para o meio da selva, o realizador peca ao intervir exageradamente no andamento
da trama. Com uma condução por vezes pretensiosa, ele merece elogios por pensar
grande, por mirar em títulos como os extraordinários Fitzcarraldo (1982), O
Regresso (2015) e Z: A Cidade Perdida (2017), mas, tal qual os seus
inconsequentes personagens, se “atrapalha” ao não conseguir realçar a carga
dramática da história. Um problema que, logo no leve primeiro ato, já se torna
bem nítido. Por mais que os protagonistas funcionem isoladamente, Mclean e o
roteirista Justin Monjo pecam ao não conseguir solidificar o elo entre Yossi e
os seus novos amigos Kevin (Alex Russell) e Marcus (Joel Jackson). Tudo soa
muito conveniente, muito repentino. Um deslize que poderia até se tornar
irrelevante diante do drama humano se, na transição para o segundo ato, o
argumento não decidisse investir em rixas rasas e mal construídas. De uma hora
para outra os personagens ganham novos (e até então inexplorados) traços de
personalidade. O afetuoso Marcus se torna um tipo vulnerável e carente. O
astuto Kevin vira uma figura arrogante e autossuficiente num ambiente hostil.
Até Yossi ganha uma aura ambiciosa completamente aleatória. Apesar do esforço
do competente elenco, as mudanças soam quase radicais, quebrando o viés
naturalista e nos distanciando do senso de realidade geralmente proposto nos
filmes do gênero.
Quando o longa parecia escorrer por
rio abaixo, entretanto, Greg Mclean reassume as rédeas da sua obra ao entregar
um filme de sobrevivência realmente digno. Por mais que a sua pesada direção
siga incomodando, principalmente no que diz respeito ao uso dos dispensáveis
flashbacks e na construção dos simbolismos baratos, o realizador compensa ao
traduzir sob uma perspectiva nua e crua a deterioração física e emocional de
Yossi em território selvagem. Num primeiro momento, antes ainda da tragédia em
si, é interessante ver como o diretor flerta com elementos do cinema de horror,
reforçando com visceralidade a diferença entre aqueles que sobrevivem e aqueles
que não sobrevivem. A brutal sequência do macaco, em especial, diz muito não só
sobre os personagens, mas também sobre o que eles terão de encarar pela frente.
Fazendo um desconfortável uso do cenário úmido e inóspito, McLean capricha ao
traduzir a desesperadora jornada de Yossi, ao revelar a dor, a angústia e a
solidão imposta pelo corrosivo ambiente selvagem. Sem querer revelar muito,
quando não estão ligados ao recurso do flashback, os delírios do personagem são
explorados com originalidade e peso narrativo, mostrando que o diretor tinha em
mãos as ferramentas necessárias para expor o desgaste psíquico de Yossi sem a
necessidade de nos distanciar da selva em si. Somado a isso, McLean reforça a
carga de tensão ao investir em imersivas cenas de ação, tornando tudo muito
verossímil ao capturar a desoladora posição do protagonista em solo
estrangeiro. Um predicado, diga-se de passagem, valorizado pela intensa
performance de Daniel Radcliffe. Indo além da metamorfose física, o ex-astro
‘teen’ torna experiência do seu Yossi naturalmente aflitiva perante o público.
Transitando habilmente entre a coragem e o desespero, Radcliffe some dentro do
seu personagem, concentrando nos seus erráticos gestos e no seu invasivo olhar
o misto de sentimentos enfrentados por ele. À medida que o esquálido Yossi se
“decompõe”, sendo coberto pela sujeira e pelas feridas impostas pela floresta,
é interessante ver como McLean se concentra no radiante azul dos olhos do ator,
no seu lampejo de vida, uma solução inventiva (e positivamente animalesca)
valorizada pela fria fotografia esverdeada de Stefan Duscio (Upgrade).
Cuidadoso ao respeitar a etnia
dos habitantes locais, um predicado aparentemente simples, mas frequentemente
desrespeitado em Hollywood, Na Selva convence no momento em que decide traduzir
a luta pela sobrevivência de um homem comum perdido em um dos territórios mais
inóspitos do nosso planeta. Embora os excessos do diretor Greg McLean
incomodem, uma interferência dramática irrelevante principalmente diante da
força dos fatos em si, o longa cumpre a sua missão ao mostrar que a selva não é
lugar para iniciantes.
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