quarta-feira, 6 de junho de 2018

Na Selva

Nunca subestime a vida selvagem

Daniel Radcliffe é um ator interessante. Oriundo do cinema blockbuster, me refiro, obviamente a poderosa franquia Harry Potter, o versátil ator inglês optou por se afastar gradativamente do radar do grande público. Na busca por papéis mais desafiadores, ele decidiu seguir o caminho mais difícil na dura transição da juventude para a vida adulta, se reafirmando como um realizador maduro em títulos como o subestimado A Mulher de Preto (2012), o elogiado Versos de um Crime (2012), o cult Swiss Army Man (2016) e o competente Imperium (2016). Tal qual outros representantes da sua geração, como Robert Pattinson e Kristen Stewart, dois atores talentosos que, só no momento em que se distanciaram do cinema pipoca, tiveram as suas respectivas qualidades reconhecidas, Radcliffe tem se esforçado para se distanciar do rótulo do “astro teen”, o que fica bem claro no seu mais recente trabalho, o excruciante Na Selva. Responsável por elevar o nível do material apresentado, ele impressiona ao traduzir o drama do aventureiro israelense Yossi Ghinsberg, um jovem destemido que, no início da década de 1980, ficou conhecido por sobreviver durante quase vinte dias sozinho na opressiva selva amazônica. Por mais que a pesada direção de Greg Mclean reduza o impacto da obra, principalmente quando o assunto é a construção do drama entre os personagens, Radcliffe cativa ao encarar esta trágica história real, se entregando de corpo e alma a uma produção valorosa que cumpre a sua missão quando se concentra na luta pela sobrevivência. 



Infelizmente, porém, Grag Mclean não pareceu interessado somente em explorar a árdua jornada de Ghinsberg. Embora o filme cumpra o mais básico (e complicado) requisito do gênero ao levar o set para o meio da selva, o realizador peca ao intervir exageradamente no andamento da trama. Com uma condução por vezes pretensiosa, ele merece elogios por pensar grande, por mirar em títulos como os extraordinários Fitzcarraldo (1982), O Regresso (2015) e Z: A Cidade Perdida (2017), mas, tal qual os seus inconsequentes personagens, se “atrapalha” ao não conseguir realçar a carga dramática da história. Um problema que, logo no leve primeiro ato, já se torna bem nítido. Por mais que os protagonistas funcionem isoladamente, Mclean e o roteirista Justin Monjo pecam ao não conseguir solidificar o elo entre Yossi e os seus novos amigos Kevin (Alex Russell) e Marcus (Joel Jackson). Tudo soa muito conveniente, muito repentino. Um deslize que poderia até se tornar irrelevante diante do drama humano se, na transição para o segundo ato, o argumento não decidisse investir em rixas rasas e mal construídas. De uma hora para outra os personagens ganham novos (e até então inexplorados) traços de personalidade. O afetuoso Marcus se torna um tipo vulnerável e carente. O astuto Kevin vira uma figura arrogante e autossuficiente num ambiente hostil. Até Yossi ganha uma aura ambiciosa completamente aleatória. Apesar do esforço do competente elenco, as mudanças soam quase radicais, quebrando o viés naturalista e nos distanciando do senso de realidade geralmente proposto nos filmes do gênero.


Quando o longa parecia escorrer por rio abaixo, entretanto, Greg Mclean reassume as rédeas da sua obra ao entregar um filme de sobrevivência realmente digno. Por mais que a sua pesada direção siga incomodando, principalmente no que diz respeito ao uso dos dispensáveis flashbacks e na construção dos simbolismos baratos, o realizador compensa ao traduzir sob uma perspectiva nua e crua a deterioração física e emocional de Yossi em território selvagem. Num primeiro momento, antes ainda da tragédia em si, é interessante ver como o diretor flerta com elementos do cinema de horror, reforçando com visceralidade a diferença entre aqueles que sobrevivem e aqueles que não sobrevivem. A brutal sequência do macaco, em especial, diz muito não só sobre os personagens, mas também sobre o que eles terão de encarar pela frente. Fazendo um desconfortável uso do cenário úmido e inóspito, McLean capricha ao traduzir a desesperadora jornada de Yossi, ao revelar a dor, a angústia e a solidão imposta pelo corrosivo ambiente selvagem. Sem querer revelar muito, quando não estão ligados ao recurso do flashback, os delírios do personagem são explorados com originalidade e peso narrativo, mostrando que o diretor tinha em mãos as ferramentas necessárias para expor o desgaste psíquico de Yossi sem a necessidade de nos distanciar da selva em si. Somado a isso, McLean reforça a carga de tensão ao investir em imersivas cenas de ação, tornando tudo muito verossímil ao capturar a desoladora posição do protagonista em solo estrangeiro. Um predicado, diga-se de passagem, valorizado pela intensa performance de Daniel Radcliffe. Indo além da metamorfose física, o ex-astro ‘teen’ torna experiência do seu Yossi naturalmente aflitiva perante o público. Transitando habilmente entre a coragem e o desespero, Radcliffe some dentro do seu personagem, concentrando nos seus erráticos gestos e no seu invasivo olhar o misto de sentimentos enfrentados por ele. À medida que o esquálido Yossi se “decompõe”, sendo coberto pela sujeira e pelas feridas impostas pela floresta, é interessante ver como McLean se concentra no radiante azul dos olhos do ator, no seu lampejo de vida, uma solução inventiva (e positivamente animalesca) valorizada pela fria fotografia esverdeada de Stefan Duscio (Upgrade).


Cuidadoso ao respeitar a etnia dos habitantes locais, um predicado aparentemente simples, mas frequentemente desrespeitado em Hollywood, Na Selva convence no momento em que decide traduzir a luta pela sobrevivência de um homem comum perdido em um dos territórios mais inóspitos do nosso planeta. Embora os excessos do diretor Greg McLean incomodem, uma interferência dramática irrelevante principalmente diante da força dos fatos em si, o longa cumpre a sua missão ao mostrar que a selva não é lugar para iniciantes.


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