Um realizador no auge da
sua forma técnica, o mestre Sergio Leone explorou o dispositivo cinema em sua
máxima potência no épico Era Uma Vez no Oeste. Após amadurecer a sua arte na
fantástica Trilogia dos Dólares (leia a nossa opinião aqui), o diretor italiano
nos brindou com o western definitivo, uma película densa, grandiosa e
tecnicamente primorosa. Com personagens icônicos, uma fotografia
inacreditavelmente bela e um roteiro recheado de envolventes nuances, Leone
exibiu o seu vasto repertório fílmico ao extrair a tensão por trás de uma
história de vingança e ambição, "assinando" uma verdadeira carta de
amor a este clássico segmento.
Com roteiro assinado pelo próprio Sergio Leone, em parceria com Sergio Donati, Era Uma Vez do Oeste precisa de pouco mais de trinta minutos para estabelecer os três lados desta instigante trama. E que introdução de personagens! Logo na fantástica sequência de abertura conhecemos o misterioso pistoleiro sem nome (Charles Bronson), um homem de poucas palavras que é recebido de maneira nada amistosa por um trio de foras da lei. Frustrado por não encontrar o alvo da sua busca, ele resolve sair à procura do frio Frank (Hanry Fonda), o cerebral braço direito de um ambicioso dono de uma companhia férrea. No caminho, porém, o forasteiro cruza o caminho da indomável Jill (Claudia Cardinale), uma mulher recém-casada obrigada a reconstruir o seu tão estimado lar após ser vítima de um violento processo de "desapropriação". Isolada e sob a mira de Frank, ela cria uma improvável conexão com o pistoleiro e com o procurado Cheyenne (Jason Robards), um astuto criminoso que parece comovido com a sua ameaçadora situação. Inicialmente assustada, Jill passa a conviver com a presença destes dois estranhos, sem ter a certeza se eles seriam páreo para o seu letal perseguidor.
Com uma forte carga
dramática e personagens inesperadamente humanos, Era Uma Vez no Oeste se
sustenta com louvor ao longo das suas memoráveis 2 h e 45 min de duração.
Mestre na arte de extrair a tensão por trás deste violento cenário, Sergio
Leone mostra aqui o seu completo amadurecimento enquanto cineasta ao valorizar
também o desenvolvimento dos personagens, a construção das suas nuances mais
íntimas, indo além dos arquétipos do gênero ao investir em figuras profundas e
arcos realmente surpreendentes. Por mais que o realizador faça um primoroso uso
dos velhos dualismos do gênero Western, ele não se contenta em repetir a
fórmula apresentada na cultuada Trilogia dos Dólares. Logo na já elogiada cena
de abertura, por exemplo, percebemos que o herói interpretado com maestria por
Charles Bronson não é imune aos perigos de um duelo. Com o avançar da trama,
inclusive, Leone se esquiva do "acaso" ao criar uma estreita conexão
entre os protagonistas, ao tornar crível a interação entre eles, permitindo que
o espectador compreenda as reações de cada um deles ao longo da película.
Embora seja um
antagonista com "a" maiúsculo, por exemplo, o cruel Frank exibe uma
ambição e um desejo de mudança que o transforma num tipo bem mais complexo do
que parecia ser inicialmente. O mesmo, aliás, acontece com a bela Jill, uma
mulher aparentemente indefesa que, à sua maneira, usa a sua própria experiência
para lidar a sua complicada situação. Através de diálogos provocantes e
sequências naturalmente nervosas, Leone se preocupa em traduzir a dor, a
frustração, a moralidade e os anseios dos seus personagens, imprimindo
densidade e substância a uma premissa que não parecia ter tantos predicados
assim. O resultado é uma mistura silenciosa recheada de tensão, um roteiro
crescente e brilhantemente delineado que culmina numa arrepiante reviravolta e
num desfecho antiprogressista. Nas entrelinhas, inclusive, é interessante ver a
ascensão de um antagonista mais predatório e sorrateiro, simbolizado pelo
fragilizado dono da companhia férrea interpretado por Gabriele Ferzetti, um
novo e poderoso inimigo capaz de "aposentar" os tão populares pistoleiros sem nome. Tanto que este foi último Western Spaghetti dirigido por
Sergio Leone e um dos últimos grandes representantes do gênero antes da sua
derrocada a partir da década de 1970.
E como se não bastasse o
magnífico argumento, em Era uma Vez no Oeste somos convidados a assistir o
vasto repertório técnico deste verdadeiro mestre da sétima arte. Sem medo de
colocar a mão na massa, Sergio Leone investe em imponentes cenários e em
grandiosas construções, criando um ambiente em que tudo parece realmente
habitável. Num determinado momento, inclusive, é possível ver uma cidade crescendo
em torno de uma casa, uma sequência épica com uma centena de extras e muito
movimento que só um gênio poderia ser capaz de idealizar. Fazendo um primoroso
uso da elegante fotografia desértica de Tonino Delli Colli (Três Homens em
Conflito, A Vida é Bela), Leone brilha não só ao traduzir a grandiloquência e a
exuberância natural do set de filmagens, como também ao construir quadros
realmente preciosos, sequências marcantes repletas de estilo e muito suspense.
Como de costume na sua
filmografia, o realizador é minucioso na composição das suas cenas, no
posicionamento do elenco dentro do expressivo cenário e no uso de recursos como
o vento e o figurino, nos brindando com alguns planos abertos e primeiros
planos dignos de moldura. Leone, porém, impressiona por sua variedade de
soluções técnicas. Com uma montagem completamente à frente do seu tempo, o
realizador potencializa a atmosfera de tensão ao capturar a expressão
individual dos seus personagens, a reação deles a cada gesto e\ou atitude,
tornando tudo muito fluído ao transitar harmoniosamente entre os expressivos
planos fechados, os e os reveladores
planos detalhes. Aqui, inclusive, o diretor mostra "truques" ainda
mais inventivos, vide os engenhosos movimentos panorâmicos e o refinado uso da
câmera subjetiva dentro do clímax. Sem querer revelar muito, a solução
encontrada por Leone para sustentar o mistério em torno do destino dos
protagonistas é espetacular, uma aula de cinema.
O que seria de Sergio
Leone, porém, se não fosse o seu fiel escudeiro Ennio Morricone. Numa das suas
criações mais icônicas, ele nos brinda com uma trilha estupenda, uma composição
épica capaz de realçar tanto as sequências mais dramáticas e tensas, como
também os breves momentos mais irônicos. Num todo, aliás, chama atenção a
maneira com que o diretor italiano utiliza os efeitos sonoros (e o próprio
silêncio) na construção das suas cenas, incrementando a ação ora com variações
melódicas, ora com ruídos corriqueiros, como os sons de uma locomotiva e o
barulho do vento. Em suma, tecnicamente inquestionável, Era uma Vez no Oeste é
um adeus recheado de sentimento, uma última visita a um universo que o próprio
Leone ajudou a moldar. Embora tenha voltado ao Western Zapata em Quando Explode
a Vingança (1971), ele aposentou o seu pistoleiro sem nome numa obra
definitiva, um filme denso, envolvente e levemente melancólico totalmente
coerente com o cenário de transformação social\política na transição dos anos
60 para os anos 70. Na verdade, ao misturar a dramaticidade de Por Uns Dólares
a Mais (1965) com a imponência visual de Três Homens em Conflito (1966), Sergio
Leone se posicionou na vanguarda ao entregar um Western capaz de se sustentar
não só nas implacáveis cenas de ação e no carisma dos seus pistoleiros, como
também na força de uma combativa protagonista feminina e na solidez de um
roteiro fascinado pelos seus preciosos personagens.
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