terça-feira, 29 de agosto de 2017

Do Fundo do Baú (Era uma Vez no Oeste)

Um realizador no auge da sua forma técnica, o mestre Sergio Leone explorou o dispositivo cinema em sua máxima potência no épico Era Uma Vez no Oeste. Após amadurecer a sua arte na fantástica Trilogia dos Dólares (leia a nossa opinião aqui), o diretor italiano nos brindou com o western definitivo, uma película densa, grandiosa e tecnicamente primorosa. Com personagens icônicos, uma fotografia inacreditavelmente bela e um roteiro recheado de envolventes nuances, Leone exibiu o seu vasto repertório fílmico ao extrair a tensão por trás de uma história de vingança e ambição, "assinando" uma verdadeira carta de amor a este clássico segmento. 

Com roteiro assinado pelo próprio Sergio Leone, em parceria com Sergio Donati, Era Uma Vez do Oeste precisa de pouco mais de trinta minutos para estabelecer os três lados desta instigante trama. E que introdução de personagens! Logo na fantástica sequência de abertura conhecemos o misterioso pistoleiro sem nome (Charles Bronson), um homem de poucas palavras que é recebido de maneira nada amistosa por um trio de foras da lei. Frustrado por não encontrar o alvo da sua busca, ele resolve sair à procura do frio Frank (Hanry Fonda), o cerebral braço direito de um ambicioso dono de uma companhia férrea. No caminho, porém, o forasteiro cruza o caminho da indomável Jill (Claudia Cardinale), uma mulher recém-casada obrigada a reconstruir o seu tão estimado lar após ser vítima de um violento processo de "desapropriação". Isolada e sob a mira de Frank, ela cria uma improvável conexão com o pistoleiro e com o procurado Cheyenne (Jason Robards), um astuto criminoso que parece comovido com a sua ameaçadora situação. Inicialmente assustada, Jill passa a conviver com a presença destes dois estranhos, sem ter a certeza se eles seriam páreo para o seu letal perseguidor. 



Com uma forte carga dramática e personagens inesperadamente humanos, Era Uma Vez no Oeste se sustenta com louvor ao longo das suas memoráveis 2 h e 45 min de duração. Mestre na arte de extrair a tensão por trás deste violento cenário, Sergio Leone mostra aqui o seu completo amadurecimento enquanto cineasta ao valorizar também o desenvolvimento dos personagens, a construção das suas nuances mais íntimas, indo além dos arquétipos do gênero ao investir em figuras profundas e arcos realmente surpreendentes. Por mais que o realizador faça um primoroso uso dos velhos dualismos do gênero Western, ele não se contenta em repetir a fórmula apresentada na cultuada Trilogia dos Dólares. Logo na já elogiada cena de abertura, por exemplo, percebemos que o herói interpretado com maestria por Charles Bronson não é imune aos perigos de um duelo. Com o avançar da trama, inclusive, Leone se esquiva do "acaso" ao criar uma estreita conexão entre os protagonistas, ao tornar crível a interação entre eles, permitindo que o espectador compreenda as reações de cada um deles ao longo da película. 


Embora seja um antagonista com "a" maiúsculo, por exemplo, o cruel Frank exibe uma ambição e um desejo de mudança que o transforma num tipo bem mais complexo do que parecia ser inicialmente. O mesmo, aliás, acontece com a bela Jill, uma mulher aparentemente indefesa que, à sua maneira, usa a sua própria experiência para lidar a sua complicada situação. Através de diálogos provocantes e sequências naturalmente nervosas, Leone se preocupa em traduzir a dor, a frustração, a moralidade e os anseios dos seus personagens, imprimindo densidade e substância a uma premissa que não parecia ter tantos predicados assim. O resultado é uma mistura silenciosa recheada de tensão, um roteiro crescente e brilhantemente delineado que culmina numa arrepiante reviravolta e num desfecho antiprogressista. Nas entrelinhas, inclusive, é interessante ver a ascensão de um antagonista mais predatório e sorrateiro, simbolizado pelo fragilizado dono da companhia férrea interpretado por Gabriele Ferzetti, um novo e poderoso inimigo capaz de "aposentar" os tão populares pistoleiros sem nome. Tanto que este foi último Western Spaghetti dirigido por Sergio Leone e um dos últimos grandes representantes do gênero antes da sua derrocada a partir da década de 1970.


E como se não bastasse o magnífico argumento, em Era uma Vez no Oeste somos convidados a assistir o vasto repertório técnico deste verdadeiro mestre da sétima arte. Sem medo de colocar a mão na massa, Sergio Leone investe em imponentes cenários e em grandiosas construções, criando um ambiente em que tudo parece realmente habitável. Num determinado momento, inclusive, é possível ver uma cidade crescendo em torno de uma casa, uma sequência épica com uma centena de extras e muito movimento que só um gênio poderia ser capaz de idealizar. Fazendo um primoroso uso da elegante fotografia desértica de Tonino Delli Colli (Três Homens em Conflito, A Vida é Bela), Leone brilha não só ao traduzir a grandiloquência e a exuberância natural do set de filmagens, como também ao construir quadros realmente preciosos, sequências marcantes repletas de estilo e muito suspense. 


Como de costume na sua filmografia, o realizador é minucioso na composição das suas cenas, no posicionamento do elenco dentro do expressivo cenário e no uso de recursos como o vento e o figurino, nos brindando com alguns planos abertos e primeiros planos dignos de moldura. Leone, porém, impressiona por sua variedade de soluções técnicas. Com uma montagem completamente à frente do seu tempo, o realizador potencializa a atmosfera de tensão ao capturar a expressão individual dos seus personagens, a reação deles a cada gesto e\ou atitude, tornando tudo muito fluído ao transitar harmoniosamente entre os expressivos planos fechados, os  e os reveladores planos detalhes. Aqui, inclusive, o diretor mostra "truques" ainda mais inventivos, vide os engenhosos movimentos panorâmicos e o refinado uso da câmera subjetiva dentro do clímax. Sem querer revelar muito, a solução encontrada por Leone para sustentar o mistério em torno do destino dos protagonistas é espetacular, uma aula de cinema.


O que seria de Sergio Leone, porém, se não fosse o seu fiel escudeiro Ennio Morricone. Numa das suas criações mais icônicas, ele nos brinda com uma trilha estupenda, uma composição épica capaz de realçar tanto as sequências mais dramáticas e tensas, como também os breves momentos mais irônicos. Num todo, aliás, chama atenção a maneira com que o diretor italiano utiliza os efeitos sonoros (e o próprio silêncio) na construção das suas cenas, incrementando a ação ora com variações melódicas, ora com ruídos corriqueiros, como os sons de uma locomotiva e o barulho do vento. Em suma, tecnicamente inquestionável, Era uma Vez no Oeste é um adeus recheado de sentimento, uma última visita a um universo que o próprio Leone ajudou a moldar. Embora tenha voltado ao Western Zapata em Quando Explode a Vingança (1971), ele aposentou o seu pistoleiro sem nome numa obra definitiva, um filme denso, envolvente e levemente melancólico totalmente coerente com o cenário de transformação social\política na transição dos anos 60 para os anos 70. Na verdade, ao misturar a dramaticidade de Por Uns Dólares a Mais (1965) com a imponência visual de Três Homens em Conflito (1966), Sergio Leone se posicionou na vanguarda ao entregar um Western capaz de se sustentar não só nas implacáveis cenas de ação e no carisma dos seus pistoleiros, como também na força de uma combativa protagonista feminina e na solidez de um roteiro fascinado pelos seus preciosos personagens. 

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