quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Trumbo

Em defesa da liberdade ideológica

Alvo do Macartismo, uma paranoica campanha anticomunista liderada pelo Senador Joseph McCarthy, o roteirista Dalton Trumbo sentiu na pele os trágicos efeitos da invasiva lista negra. Após se calar diante da comissão parlamentar de inquérito da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, o escritor foi preso, perseguido pela mídia, sofreu com o preconceito da indústria e perdeu praticamente tudo o que conquistou ao longo de anos de sucesso. A sua volta por cima, porém, se tornou uma espécie de golpe contra este perigoso movimento, o que fica evidente na reveladora cinebiografia Trumbo: Lista Negra. Um prato cheio para os fãs da sétima arte, a película dirigida por Jay Roach (Entrando numa Fria) fascina ao reproduzir os bastidores de Hollywood durante este conturbado período, escancarando com riqueza de detalhes os obstáculos enfrentados pelo realizador durante quase duas décadas de sua vida. Ainda que não mostre a mesma profundidade quando o assunto são as espinhosas questões políticas, o longa encontra na soberba atuação de Brian Cranston o vigor necessário para levantar uma singular bandeira em prol da liberdade de expressão.


Sem qualquer tipo de floreio narrativo, o argumento assinado por John McNamara é sucinto e linear ao transitar por uma série de episódios da vida de Dalton Trumbo. Inspirado na biografia assinada por Bruce Cook, Jay Roach equilibra intimidade e história com extrema perícia, permitindo que o grande público conheça não só a faceta genial do escritor, como também o homem por trás dos prêmios. Ainda que a ligação de Trumbo com o partido Comunista seja introduzida com certo desleixo durante o primeiro ato, vide a simplista e utópica síntese sobre este movimento no diálogo entre pai e filha, o diretor foge do lugar comum ao explorar os ideais políticos do roteirista. Mais do que criar um herói ou um símbolo de luta, o longa é sagaz ao expor as incoerências presentes no discurso do aclamado realizador, um homem que defendia a igualdade, os menos abastados dentro da indústria do cinema, mas que levava uma confortável vida "capitalista" ao lado da sua família numa bela casa do interior. Da relação entre ele e o idealista Arlen Hird, inclusive, nascem alguns dos melhores e mais honestos diálogos do filme, justamente por revelar o misto de vaidade e altruísmo por trás das atitudes Trumbo. Curiosamente, o personagem interpretado pelo ácido Louis C.K. é um dos poucos elementos fictícios da trama, uma figura inspirada em cinco personalidades reais, entre eles os roteiristas judeus Alvah Bessie (Um Punhado de Bravos), Albert Maltz (Os Abutres têm Fome) e Lester Cole (A História de Elsa).


E essa opção de humanizar a figura de Dalton Trumbo, aliás, ganha ainda mais eco no momento que o longa resolve explorar a relação do escritor com a sua esposa e filhos. Suficientemente maduro ao explorar o impacto da pressão anticomunista e da ignorância na rotina do realizador, Jay Roach esbanja sensibilidade ao passear por alguns temas mais íntimos, entre eles os problemas financeiros, a frustração profissional e o consequente distanciamento da família, o que fica evidente na complicada relação entre ele e a sua crescida filha Niki. Doce e engajada, a personagem interpretada pela magnética Elle Fanning se torna uma espécie de voz da razão, uma figura precoce capaz de evidenciar as falhas de Trumbo e as suas prioridades enquanto pai. Além disso, ainda no núcleo familiar, a maneira cuidadosa com que o diretor narra o 'modus operandi' do roteirista merece elogios, principalmente por realçar as manias, os excessos e a sua oscilação de temperamento durante a confecção dos scripts.


É quando se volta para os bastidores de Hollywood, porém, que o longa se torna uma experiência fascinante aos olhos do público. Impulsionado pela afiada montagem, Jay Roach permite que cada um dos realizadores mostrados no longa ganhe um bem vindo espaço na trama, o que se torna decisivo para a construção do envolvente último ato. Sob um ponto de vista irônico, elucidativo e propositalmente polarizado, o argumento é habilidoso ao traduzir a rixa ideológica entre os liberais e os conservadores, dando ênfase a nomes conhecidos dentro da indústria, incluindo o astro John Wayne (David James Elliott), a colunista social Hedda Hopper (Helen Mirren, adorável na pele de uma detestável personagem) e o diretor alemão Otto Preminger (Christian Berkel). Melhor ainda, aliás, é a relação de Trumbo com um jovem e indomável Kirk Douglas (Dean O'Gorman, incrível em cena), com o extravagante produtor Frank King (John Goodman, impagável) e com o bem sucedido ator Edward G. Robinson (Michael Stuhlbarg, excelente). Esta última, inclusive, merecia um espaço maior dentro da trama, já que dela nasce um denso arco dramático envolvendo o despedaçar de uma sincera amizade.


E como se não bastasse o cuidado do realizador ao reproduzir os traços mais marcantes destas personalidades, Jay Roach é igualmente inspirado ao utilizar as imagens de arquivos e algumas sequências clássicas. Numa sacada de mestre, ao invés de simplesmente reproduzir as cenas reais, o realizador opta por refilmar alguns icônicos momentos utilizando o seu próprio elenco, os costurando ao material original com absurda perícia. Méritos que, obviamente, precisam ser divididos com a equipe de direção de arte, detalhista ao recriar as roupas, o luxo e os cenários desta fase áurea de Hollywood. Por outro lado, a colorida fotografia de Jim Denault (Até o Fim) destoa nos momentos mais dramáticos, adicionando uma leveza incompatível com o estado de espírito dos personagens. O mesmo, aliás, podemos dizer da genérica trilha sonora de Theodore Shapiro, que, em alguns momentos, me fez lembrar daqueles esquecíveis telefilmes biográficos. Todos estes pequenos problemas, porém, são amenizados diante da estupenda performance de Brian Cranston. Dono de um indiscutível carisma, o ator se torna a alma da película, principalmente por absorver o misto de orgulho, generosidade e excentricidade do seu complexo personagem. Com uma figura tão rica em mãos, Cranston nos faz enxergar a faceta mais humana de Trumbo, um homem inteligente e influente que se tornou uma sorrateira voz contra a arbitrária campanha anticomunista liderada por algumas correntes em Hollywood. Além disso, o ator absorve com perfeição os maneirismos do escritor, o que fica claro quando nos deparamos com as imagens de arquivo durante os créditos finais. 


Indo da comédia ao drama com extrema harmonia, Trumbo: Lista Negra é uma cinebiografia espirituosa sobre um homem falho e genial que acreditava no poder da liberdade de expressão. Contando com um talentoso elenco de apoio, capitaneado pelos excelentes Louis C.K., John Goodman, Diane Lane e Elle Fanning, Jay Roach constrói uma película leve, por vezes simplista, mas inegavelmente madura, uma obra capaz de exaltar a volta por cima profissional do roteirista Dalton Trumbo, sem deixar de expor as dolorosas consequências por trás da repressão imposta pelo movimento anticomunista nos EUA. Um relato precioso numa época em que velhos discursos parecem ganhar novos interlocutores. 


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