Numa época em que para se tirar uma grande produção do papel era
necessário um árduo trabalho cênico, engenhosidade técnica e uma
considerável dose de coragem, John Frankenheimer testou os limites da velha
Hollywood no grandioso O Trem (1964). Convocado às pressas para substituir o
antigo comandante do longa, o importante Arthur Penn (Bonnie e Clyde: Uma
Rajada de Balas), o diretor norte-americano resolveu fazer do seu jeito, exigiu
o corte final do filme, um novo roteiro, um orçamento dobrado, o seu nome no
título original e uma Ferrari como pagamento. Mesmo diante dos inúmeros
obstáculos, as locações na Normandia logo se tornaram um agente complicador,
Frankenheimer resolveu prezar pelo realismo, pelo virtuosismo estético e pela
imponência da ação ao construir um épico de guerra de proporções ainda hoje
espantosas. Fazendo um magnífico uso dos elementos práticos, entre eles as
gigantescas locomotivas e os velozes caças, o realizador nos brinda com
sequências de tirar o fôlego, capturadas com brilhantismo através dos seus
expressivos enquadramentos e dos seus inventivos takes aéreos. Por trás de tamanho preciosismo técnico, porém, existe uma trama sólida e contundente, uma
jornada de obsessão e dor protagonizada pelos excelentes Burt Lancaster e Paul
Scofield.
Baseado no conto Le Front De L'Art, de Rose Valland, o roteiro de
Franklin Coen e Frank Davis volta à Segunda Guerra para narrar a perigosa ação
de um grupo de rebeldes que se ergueram contra os alemães na tentativa de
impedir que clássicas pinturas fossem "sequestradas" pelos nazistas.
Apesar do foco estar na ação propriamente dita, o argumento é impecável ao
expor as incoerências por trás destas missões, se esquivando dos clichês
altruístas ao enfatizar os perigos enfrentados pelos franceses durante este
doloroso período. Ainda que a marcante trilha sonora de Maurice Jarre (Lawrence
da Arábia) dê acordes heroicos ao longa, Frankenheimer não poupa o espectador
ao revelar as trágicas consequências em torno dos atos dos sabotadores, colocando
o dedo na ferida ao questionar o quão válido era o sacrifício de inocentes
diante de um objetivo aparentemente tão supérfluo.
Na trama, ciente da iminente
invasão dos Aliados, o coronel Von Waldheim (Scofield) reúne a sua inestimável
coleção de quadros e decide mandá-los para Alemanha num trem. Apaixonado pelas
artes, ele usa o seu poder de influência e convence o seu superior a liberar
uma viagem em meio à caótica fuga da França. O oficial da SS, porém, não
contava que o seu caminho fosse cruzar com o do íntegro Labiche (Lancaster), um
inspetor do sistema férreo ligado à resistência. Após uma série de missões
quase suicidas, o esgotado homem é pego de surpresa quando o líder da
resistência (Paul Bonifas) sugere que o fragilizado grupo impedisse que o trem
com as obras de arte deixasse a França. Inicialmente errático quanto ao
objetivo, Labiche se vê obrigado a entrar na missão após uma dura perda,
criando uma nociva rixa com o gélido alemão.
Apesar da enxuta quantidade de diálogos, O Trem é inesperadamente
profundo ao construir o obcecado duelo entre os multidimensionais Von Waldheim
e Labiche. Reconhecido pelos seus trabalhos mais voltados para o cinema de
ação, John Frankenheimer esbanja inspiração ao explorar o gradativo clima de
tensão envolvendo a missão dos resistentes, criando uma polarização que só
potencializa o suspense em torno do jogo de gato e rato férreo idealizado pelo
roteiro. Mesmo em lados opostos, os dois compartilham de sentimentos
semelhantes, um misto de integridade,
vaidade e obsessão, ingredientes que são habilmente trabalhados até o corajoso
clímax. Somado a isso, Frankenheimer mostra inspiração ao traduzir o estado de
espírito dos personagens através dos seus refinados enquadramentos, fazendo um
excelente uso dos primeiros planos ao realçar a expressão dos personagens e as
transformações impostas por esta devastadora rixa.
Neste sentido, aliás, é
preciso elogiar também as primorosas atuações da dupla Burt Lancaster e Paul
Scofield. Longe do perfil heroico, o primeiro cria um rebelde errático, um
homem abalado que é “empurrado” para uma nova missão pelos seus parceiros de
resistência. Responsável pelas principais mudanças na produção do longa,
Lancaster exigiu que a produção ganhasse ares mais grandiosos, indo de encontro
a proposta intimista defendida por Arthur Penn, o que se revelou um acerto
inquestionável. Com um tipo ainda mais complexo em mãos, Paul Scofield mostra
comedimento ao criar um antagonista vil e singular. Uma figura imponente e
ameaçadora que expõe as suas fragilidades à medida que se vê desafiado por um
rival à sua altura. Ainda sobre o elenco, enquanto Jeanne Moreau ganha um
merecido destaque com a destemida Christine, a dupla Michel Simon e Albert Rémy
adiciona uma dose de energia ao abraçar a bravura dos sabotadores Papa Boule e
Didont.
O grande diferencial de O Trem, no entanto, reside no seu apuro estético
e na verossimilhança defendida pelo longa. Apoiado pela estilosa
fotografia em preto e branco da dupla Jean Tournier e Walter Wottitz, impecável
ao trabalhar com a luz e as sombras nos iluminados takes noturnos, John
Frankenheimer é inicialmente primoroso ao utilizar as surradas paisagens da
Normandia. Numa proposta completamente à frente do seu tempo, o realizador
norte-americano esbanjou virtuosismo técnico ao investir tanto em
extraordinárias tomadas aéreas, quanto em expansivos planos conjuntos,
permitindo que o espectador enxergue o todo em torno das grandiosas sequências
de ação. A cena em que Lancaster atinge o topo de uma montanha é fantástica e
sintetiza a obstinação do personagem em torno dos seus objetivos. Melhor ainda,
aliás, é a sagacidade do realizador ao utilizar os cenários reais. Com o aval das
autoridades e dos especialistas franceses, Frankenheimer usou explosivo para dinamitar uma antiga instalação férrea, o que explica o espantoso
senso de realismo em torno deste momento. O que falar, então, da incrível cena
de perseguição envolvendo um caça e uma locomotiva, um daqueles takes sufocantes
que só um mestre na arte do CGI é capaz de recriar nos dias de hoje. Na
verdade, ao utilizar elementos práticos, incluindo trens e aviões, Frankenheimer
adiciona um inestimável peso às explosivas cenas de ação. Num todo, aliás, o
diretor é cuidadoso ao reproduzir o 'modus operandi' dos maquinistas, dando uma
bem vinda ênfase a situações aparentemente sem grande importância, entre elas a
simples construção de uma peça ou a reconstrução de um trilho destruído.
Contando ainda com uma envolvente montagem, impecável ao arquitetar o
suspense em torno da perseguição, e com uma detalhista direção de arte, os
uniformes e as construções só ampliam o senso de imersão do longa, O Trem é um
épico de guerra poderoso que alia narrativa e visual numa experiência
absolutamente única. Com coragem para oferecer aquilo que o recente Caçadores
de Obras-Primas (2014) não conseguiu, John Frankenheimer se esquiva dos clichês
artísticos ao defender a vida e ao destacar a incoerência por trás da derradeira missão deste grupo de rebeldes.
Leia a nossa opinião sobre outros clássicos do cinema clicando aqui.
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