As consequências de uma mudança
No auge de um acalorado debate em torno da mudança de gênero, A Garota Dinamarquesa volta ao passado para trazer a tona um tema atual e ainda hoje tratado como um tabu dentro da nossa sociedade. Inspirado na história real do pintor Einar Wegener, um homem casado que, na década de 1930, decidiu se submeter a uma arriscada cirurgia de troca de sexo, o longa esbanja delicadeza ao investigar o impacto da repressão sexual na rotina deste expressivo artista. Elegantemente conduzido pelo diretor Tom Hooper, o argumento é poético ao retratar a jornada de auto-afirmação do protagonista, traduzindo com sutileza os efeitos desta opção na relação de companheirismo entre ele e a sua amorosa esposa. Nos momentos em que precisa ir mais a fundo na dor dos seus personagens, no entanto, Hooper não parece ter a mesma coragem de Lili Elbe, esvaziando algumas situações que mereciam um desenvolvimento mais contundente. Menos mal que, em duas atuações memoráveis, Eddie Redmayne e Alicia Vikander compensam os excessos líricos do realizador, encarando com humanidade e vigor os dilemas de um casal transformado por uma repentina mudança.
Com um tema ardiloso em mãos, a roteirista Lucinda Coxon é cuidadosa aos desvendar alguns dos mistérios em torno desta pioneira transexual. Por mais que a introdução da vocação feminina de Einar soe superficial num primeiro momento, o argumento adota um tom esclarecedor ao analisar as nuances comportamentais do pintor, revelando gradativamente as suas descobertas, medos e certezas. Inspirado ao capturar a feminilidade por trás das atitudes do protagonista, Tom Hooper investe nos simbolismos ao espalhar vestígios da presença de Lili ao longo do espirituoso primeiro ato, mesmo quando esta "transformação" ainda era tratada como uma brincadeira entre marido e mulher. Se olharmos com maior atenção, "ela" se manifesta na forma como Einar observa as roupas de seda da esposa, na maneira carinhosa com que ele manuseia os figurinos de um balé ou até mesmo no momento em que o casal inverte os papéis em uma singela sequência de amor. Além disso, à medida que o longa passa a investigar as consequências da repressão na vida do pintor, Hooper é sensível ao dissecar a complexa personalidade do transgênero. Dentro do contexto da época, o argumento é intimista ao traduzir as emoções experimentadas por Einar diante da crescente presença de Lili, colocando em cheque alguns dos mais enraizados tabus sexuais acerca deste interessante assunto.
A força motora de A Garota Dinamarquesa, no entanto, reside na sincera relação de companheirismo entre Einar e a sua esposa Gerda. Lacrimosa na dose certa, a parceria entre os dois se torna um terreno fértil nas mãos de Tom Hooper, que abre um generoso espaço para esta independente personagem feminina. Através de comoventes discussões, o argumento é primoroso ao desenvolver o impacto desta transformação na rotina do afetuoso casal, principalmente quando se volta para os conflitantes dilemas de Gerda. Uma mulher que, apesar do amor incondicional pelo seu marido, resolve ajuda-lo a assumir uma nova e distante identidade. À medida que se aproxima da tão esperada operação, porém, o argumento sofre uma perceptível queda de qualidade. Abordados com brevidade, os efeitos da cirurgia são inexplicavelmente subaproveitados dentro do apressado último ato, esvaziando temas como a árdua recuperação física de Lili e a sua ressocialização como mulher. Apesar do seu inegável talento na construção das cenas mais delicadas, vide a belíssima sequência em que Einar interioriza os trejeitos femininos durante uma sessão de striptease, Hooper decide investir num arremate exageradamente poético e melodramático, pecando pela evidente falta de contundência ao arrematar a ousada e dolorosa jornada da transexual.
Equívocos que, inquestionavelmente, são amenizados pelas expressivas atuações de Eddie Redmayne e da nova sensação Alicia Vikander. Na contramão do seu laureado trabalho em A Teoria de Tudo, reconhecidamente uma desempenho físico e obstinado, o jovem inglês esbanja sutileza ao absorver a feminilidade do protagonista. Interpretando um tipo complexo, Redmayne vai do frágil ao corajoso com absurda elegância, tornando crível o turbilhão de emoções enfrentado pelo transgênero. Me arrisco a dizer, no entanto, que é de Alicia Vikander a principal atuação de A Garota Dinamarquesa. Dando vida a uma personagem de aparência indomável, a atriz sueca entrega uma performance forte e sedutora, traduzindo com rara inspiração o sofrimento de Gerda diante da iminente desconstrução do seu "marido". A química entre Redmayne e Vikander, aliás, é realmente preciosa, facilitando o trabalho de Tom Hooper na condução das honestas sequências mais emotivas. Além deles, mal desenvolvido pelo roteiro, o raso amigo de infância Hans ganha contornos mais interessantes nas mãos do francês Matthias Schoenaerts (do ótimo Ferrugem e Osso). Apesar de ser dele uma das melhores frases do longa, a sugestiva amizade de infância entre o seu personagem e Einar fica na promessa, acrescentando bem pouco ao rumo da trama. O mesmo, aliás, acontece com Ben Whishaw subaproveitado como o "interesse amoroso" de Lili.
Incrementado pela refinada direção de arte e pela iluminada fotografia de Danny Cohen, A Garota Dinamarquesa se revela um relato classudo e absolutamente humano sobre um casal à frente do seu tempo. Por mais que a abordagem excessivamente simbólica possa incomodar em alguns momentos, vide a artificial sequência final, o longa cumpre a sua missão ao jogar uma necessária luz sobre este delicado assunto, elucidando com sensibilidade e intimismo os conflitos físicos e emocionais experimentados por esta icônica transgênero. Na verdade, ao se concentrar na libertadora jornada de autoafirmação de Lili Elbe, Tom Hooper nos convida a entender um pouco mais sobre os dilemas dos transexuais, propondo uma cuidadosa reflexão sobre um tema ainda hoje tratado de maneira preconceituosa por uma parcela mais conservadora da nossa sociedade.
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