Aclamado nos Festivais de Sundance e Berlim, Que Horas ela Volta? vem comprovando ao redor do mundo o verdadeiro potencial do cinema brasileiro. Engraçado, critico e extremamente universal, o longa dirigido por Anna Muylaert (Durval Discos) cativa ao promover de maneira natural um poderoso relato sobre a atual organização social brasileira. Utilizando como pano de fundo a típica relação entre patrão e empregado, o afiado argumento é brilhante ao mostrar o impacto da desigualdade socioeconômica na rotina de duas mulheres ligadas pelo sangue, mas separadas pelas diferentes formas com que encaravam os seus papeis dentro da sociedade. Revelando os contrastes e a hipocrisia por trás da estrutura de classes do nosso país, Muyalert encontra nas vibrantes atuações de Regina Casé e Camila Márdila a força necessária para pintar, através da agitada relação entre uma resignada mãe e a sua independente filha, um moderno e espirituoso retrato social.
Evidenciando as discrepâncias sociais e culturais ainda hoje presentes em solo brasileiro, a também roteirista Anna Muylaert é certeira ao abrir mão de qualquer tipo de politicagem e dos discursos panfletários ao dissecar o complexo cenário social brasileiro. Através da desnivelada relação entre ricos e pobres, o bem humorado argumento trata com impressionante naturalismo esta espécie de "duelo de classes", propondo a reflexão a partir de temas e questionamentos completamente recorrentes dentro da nossa realidade. Embalado por diálogos preciosamente objetivos, o roteiro acompanha a história de Val (Casé), uma pernambucana que deixou a filha ainda pequena em sua terra natal e partiu para a cidade grande com o sonho de dar uma vida melhor para ela. Contratada para ser a empregada de uma requintada família paulistana, a nordestina se dedicou com afinco por mais de uma década, criando um enorme vínculo afetivo com o afetuoso Fabinho (Michel Joelsas), o filho único do casal de patrões Carlos (Lourenço Mutarelli), Barbara (Karine Teles). Dando ao jovem o carinho que ela não pôde oferecer a sua filha, Val participou ativamente de sua criação e compensou a nítida ausência dos pais. Aparentemente parte integrante desta família, Val vê o seu status mudar quando a agora crescida Jéssica (Márdila) resolve viajar para São Paulo para prestar o vestibular. Estudiosa e bastante determinada, a jovem logo entra em rota de colisão com a sua ausente mãe, principalmente ao saber que irá morar na casa dos patrões dela. Disposta a ser tratada como uma hóspede, Jéssica passa a alterar o 'status quo' dessa família, causando as mais diversas reações ao se revelar uma pessoa completamente diferente do que eles esperavam.
Explorando a ausência materna como um tema central da trama, Anna Muylaert demonstra rara inspiração ao destacar os contrastes entre mãe e filha. Através de um texto ágil e claramente crítico, a realizadora constrói duas personagens de personalidades distintas, realçando o choque cultural em torno destas duas gerações de mulheres nordestinas. A partir desta instável e cativante reaproximação, capturada com sensibilidade pelas lentes de Muylaert, o roteiro é perspicaz ao se aprofundar no jogo de aparências por trás da falsa intimidade entre patrões e empregados. Com soluções estéticas criativas, em alguns momentos a câmera parece bisbilhotar os empregadores pela porta de serviço, o longa é extremamente irônico ao escancarar a hipocrisia envolvendo esta relação, fazendo um baita uso do efeito Jéssica no cotidiano desta refinada família. Sob um ponto de vista naturalista, que de maneira esperta não se farta de explorar a rotina de Val, a temperamental vestibulanda modifica drasticamente o dia a dia de todos os envolvidos, inclusive da sua própria mãe, destacando as falhas de caráter, a falsidade e as contradições de uma família aparentemente perfeita. Fazendo da objetiva jovem uma espécie de símbolo da atual sociedade brasileira, da mulher moderna que imigra para buscar uma formação mais qualificada, o argumento é igualmente original ao desenvolver o lado mais íntimo da relação entre Val e Jéssica. Abrindo mão dos melodramas baratos, a trama é sutil ao expor os reflexos do distanciamento materno, evidenciando com sagacidade o círculo vicioso imposto pela desigualdade sociocultural no nosso país.
Que Horas Ela Volta? tem o seu brilho ampliado graças as primorosas atuações. Num longa marcado por personagens femininas fortes, Regina Casé atrai todas as atenções ao dar vida a carismática Val. Com enorme energia em cena, a atriz e apresentadora impressiona ao dar contornos mais contidos a sua empregada, capturando com absoluto equilíbrio as nuances da divertida e submissa personagem. Apoiada por diálogos naturais e bem escritos, Casé esbanja expressividade até mesmo nas sequências mais corriqueiras, como na hilária relação com a cachorra Maggie. Se Regina Casé é o coração da película, Camila Márdila é a alma desta envolvente comédia dramática. Uma verdadeira força da natureza, a jovem atriz revoluciona a trama com a sua indomável Jéssica, num tipo que se recusa a aceitar o "coitadismo". Encarando com absurda dignidade esta protagonista, Márdila é vigorosa ao representar uma nova parcela da sociedade brasileira, cheia de perguntas e reflexões, numa performance vibrante e nada panfletária. Vencedoras do Prêmio de Melhor Atriz no Festival de Sundance, as duas são auxiliadas também pela fantástica atuação de Karine Teles. Num tipo naturalmente contraditório, Teles dá um magnético ar superior a sua Barbara, escondendo com perícia as fragilidades da personagem. É através dela, aliás, que Muylaert tece a sua crítica mais incisiva acerca da classe média\alta, ressaltando que a ausência materna está longe de ser um mal que só acomete aos mais pobres. Se as mulheres são retratadas de maneira magnifica, os homens ganham contornos mais amenos dentro da trama. Enquanto Michel Joelsas (o garotinho de O Dia que Meus Pais Saíram de Férias) encanta com o sensível Fabinho, numa sincera relação de afeto e respeito com Val, a apática figura paternal interpretada por Lourenço Mutarelli encara de maneira curiosa os mais velhos clichês da relação entre patrão e empregada.
Indo do sensível ao crítico com absoluto controle, Anna Muylaert faz de Que Horas Ela Volta? um profundo e irreverente relato sobre a realidade do povo brasileiro. Fazendo questão de falar objetivamente sobre alguns dos mais enraizados problemas sociais do nosso país, esta adorável comédia empolga ao se mostrar capaz de levantar engajadas questões sem abrir mão do puro e simples entretenimento. Por mais que o clímax possa soar excessivamente otimista dentro do nosso cenário econômico, a realizadora abraça com convicção e esperança a ideia de igualdade, deixando claro que, em meio a falta de oportunidades, o esforço e a dedicação seguem sendo algumas das mais poderosas ferramentas de integração social.
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