quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Era uma Vez em Nova York

Sóbrio drama desconstrói a fábula do "sonho americano"


Recebido de forma apática no Festival de Cannes 2013, o novo longa do diretor James Gray mostra sobriedade ao recriar as dificuldades durante o processo de imigração nos EUA, na década de 1920. Neto de imigrantes russos judeus, que se submeteram a essa mesma situação no início do século XX, Gray tenta em Era uma Vez em Nova York questionar o processo de aceitação dos estrangeiros em terras norte-americanas, colocando em cheque a fábula do sonho americano. Para isso, o realizador aposta numa bela fotografia de época, na própria experiência familiar, e no reconhecido talento do ator Joaquin Phoenix, juntos em seu terceiro trabalho. 

E para recriar esse panorama dentro do início do século XX, o também roteirista Gray - ao lado de Ric Menello - narra a história das irmãs polonesas Magda (Angela Sarafyan) e Ewa Cybulsky (Marion Cotillard), duas imigrantes que chegam aos Estados Unidos fugindo da primeira grande guerra. Apesar da terrível viagem de navio, elas se mostram otimistas e acreditam que vão poder reconstruir as suas vidas junto aos seus tios. Tudo muda, no entanto, quando  as duas encontram dificuldades para passar pela alfandega. Enquanto Magda, acossada por uma Tuberculose, é detida pelo processo de imigração, Ewa tem a sua entrada negada por ter sido classificada como uma "mulher de moral duvidosa". Prestes a ser deportada, Ewa conhece Bruno (Joaquin Phoenix), um oportunista cafetão que presta seus serviços à um bordel. Sem ter a exata noção de suas atitudes, Ewa aceita a ajuda de Bruno para entrar no país, e encontra na prostituição a única alternativa para pagar o tratamento de sua irmã. Tentando deixar de lado os dilemas morais, Ewa passa a suportar essa nova rotina ao conhecer Orlando (Jeremy Renner), um talentoso mágico - primo de Bruno - que logo de cara chama a sua atenção. Dispostos a conquistar o apreço da jovem, Bruno e Orlando iniciam um duelo de grandes proporções, que influenciará diretamente na vida de cada um desses imigrantes.


Se apoiando nesse "esboço" de triângulo amoroso, a trama conduzida por James Gray dissolve aos poucos a expectativa em torno do sonho americano. Com uma narrativa sóbria e dramática, o longa deixa claro a dificuldade na aceitação de estrangeiro dentro dos EUA, tema que ainda hoje soa extremamente atual, e ganha uma abordagem interessante durante a década de 1920. Como se não bastasse a complicada viagem e todo o processo de triagem para entrar no país, a trama evidencia a falta de opções profissionais para os estrangeiros. Talvez por isso, o único que - verdadeiramente - acredita nesse sonho é um mágico ilusionista. Em uma época onde as questões morais eram motivos de empecilho para a entrada no país, Gray tenta destacar que muitas dessas situações consideradas "imorais" seriam incentivadas pelos próprios americanos. E que figuras como a de Bruno eram importantes dentro da sociedade, vide o alcance que o "cafetão" tinha junto a personalidades da politica e a própria policia. Todos esses temas interessantes, no entanto, servem apenas como pano de fundo para a relação do trio de protagonistas, e para uma série de discussões envolvendo a questão moral  por trás das atitudes dos próprios personagens.


Mantendo uma certa aura misteriosa em torno dos seus personagens, Era uma Vez em Nova York é certeiro na excelente recriação de uma Nova Iorque do início do século XX, com direito a bela fotografia de Darius Khondji (Seven), nitidamente inspirada em clássicos como O Poderoso Chefão 2 e Era uma Vez na América. Outro destaque fica pela direção de Gray, que não é apelativa quando o assunto é a prostituição, conseguindo reconstruir de forma verossímil a atmosfera suja dos bordeis de época. O roteiro, porém, não acompanha esse cuidado estético, perdendo muito do seu impacto no desenvolvimento do promissor triângulo amoroso. Nesse aspecto o filme patina, e só não beira o tedioso graças às ótimas atuações. Menos mal que uma salvadora reviravolta eleva o resultado final do longa, permitindo um desfecho comparável ao preciso desempenho do elenco.


E aqui, diga-se de passagem, vale destacar o grande trabalho de Joaquin Phoenix (Gladiador), talvez o ponto alto durante os excessivos 120 minutos. Após trabalhar com Gray em Os Amantes (2008) e Os Donos da Noite (2007), Phoenix mostra porque é um dos mais elogiados atores da atualidade. Em uma interpretação intensa, Bruno parece sempre estar escondendo algo do espectador. Flutuando entre o explosivo e o afetuoso, o ator tem um desempenho que dificulta a nossa missão em entender o verdadeiro caráter por trás do cafetão. Ele, aliás, é acompanhado de perto por Marion Cotillard (Piaf), numa interpretação contida e sensível. Apesar da atriz, em alguns momentos, parecer distante dos verdadeiros sentimentos de sua personagem, o seu desempenho é extremamente cativante. Por outro lado, Jeremy Renner (Guerra ao Terror) ganha um papel aparentemente interessante, mas que padece pelo seu fraco desenvolvimento. Ele é charmoso, confiante, tem ótimos "embates" com Phoenix, mas suas motivações nunca estão muito claras e acabam soando óbvias. Me arrisco a dizer que Renner está melhor do que o seu próprio personagem.


Com um trio de protagonistas qualificados, uma fotografia de época extraordinária e a cuidadosa direção de James Gray, Era uma Vez em Nova York acaba sendo um drama convincente, mas não memorável como o esperado. Um longa correto, denso, sem grandes falhas, mas que fica no meio do caminho entre o brilhante e o insosso. Nada que justifique, porém, a apática recepção do filme na edição 2013 do Festival de Cannes.


*Matéria originalmente publicada durante o Festival do Rio 2013. 

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