Um Sci-fi com coração
Trazendo na sua essência o DNA do gênero Sci-Fi, A Chegada é uma
película maiúscula. Tensa, inteligente e constantemente reflexiva, a nova
produção do arrojado Denis Villeneuve (Sicario, Os Suspeitos) esbanja
sensibilidade ao transitar por assuntos tão complexos com extrema plenitude.
Com uma premissa instigante em mãos, o diretor canadense
utiliza uma enigmática invasão alienígena como o estopim para a construção de
um relato humano e pacifista, um longa com múltiplas camadas capaz de abranger
temas contrastantes sem nunca perder o foco. Indo além dos
dilemas recorrentes da ficção-científica, incluindo o medo do
desconhecido e o velho dualismo razão\emoção, Villeneuve é primoroso ao apontar
a sua contextualizada mira para a frágil relação entre as grandes potências
globais, escancarando o distanciamento e as perigosas diferenças ideológicas
com inegável sagacidade. É quando se volta para a intimista jornada da sua
magnífica protagonista, porém, que o longa alcança um patamar realmente
extraordinário, principalmente por dialogar com delicadas questões universais sob
um ponto de vista absolutamente único. Em suma, independente dos ligeiros
percalços, A Chegada é um Sci-Fi raro, um longa surpreendente que consegue
desafiar o cérebro do espectador sem esquecer de tocar o seu coração.
Inspirado no conto Story of Your Life, do escritor Ted Chiang, o
argumento assinado por Eric Heisserer é praticamente irretocável ao construir a
jornada da Dr. Louise Banks (Amy Adams). Já na memorável sequência de abertura,
o longa estabelece com um soberbo poder de síntese o drama familiar da
especialista em linguística, permitindo que o público crie uma conexão
quase que instantânea com a independente personagem. O mesmo, aliás,
acontece quando o assunto é a introdução da ameaça alienígena. Sem tempo a
perder, Denis Villeneuve abraça o mistério em torno das intenções dos
extraterrestres com afinco, nos colocando no ponto de vista da protagonista ao
desvendar com um misto de espanto, medo e curiosidade os simbolismos por trás
desta repentina aparição. Na trama, após trabalhar para o exército num antigo
caso envolvendo um grupo rebelde, Louise é selecionada pelo Coronel Weber
(Forest Whitaker) para tentar decifrar a linguagem utilizada pelos aliens no
seu primeiro contato com a raça humana. Inicialmente insegura, a professora
universitária resolve aceitar a "missão", se unindo ao cientista Ian
Donnelly (Jeremy Renner) na tentativa de compreender o comportamento desta
espécie. Na linha de frente contra uma possível ameaça a vida na Terra, Louise
e Ian logo percebem que terão de correr contra o tempo, já que um grupo de
nações liderado pela China decide se preparar para um ataque sem antes entender
os reais interesses por trás desta invasão.
No que diz respeito ao aspecto Sci-Fi, A Chegada se revela uma
experiência recompensadora para os fãs
do gênero. Por mais que o ritmo suave possa parecer incômodo aos olhos do
espectador mais desavisado, Denis Villeneuve é cuidadoso ao
desenvolver a relação de aprendizado entre os especialistas e os
extraterrestres, um processo de alfabetização detalhista e plausível que se
conecta harmoniosamente ao arco dramático da protagonista. Embasado pelo 'modus
operandis' científico, o realizador abraça conceitos realmente críveis e se
esquiva do didatismo ao tornar a decodificação da linguagem alien inesperadamente atraente aos olhos do público. Chama a atenção, inclusive, o
seu esmero ao desenvolver os símbolos gráficos reproduzidos pelos
extraterrestres, uma linguagem avançada e singular que se assemelha, a grosso
modo, aos complexos ideogramas asiáticos. Além disso, Villeneuve mostra
categoria ao traduzir o misto de medo e fascínio em torno deste contato com uma
espécie alienígena, potencializando a atmosfera de tensão ao se ater
inicialmente a perspectiva de Louise. Na verdade, ainda que os aliens não
demorem muito para ganhar forma, um visual, diga-se de passagem,
tradicionalista e imponente, o diretor é inventivo ao criar um ambiente por si só desconfortável. Como se não bastasse o pálido cenário minimalista,
o canadense utiliza os ruidosos efeitos sonoros (ou até mesmo o silêncio) como
uma espécie de aliado, em especial nos momentos mais angustiantes, realçando
o potencial de imersão ao longo do primeiro ato. Melhor ainda, porém, é a
maneira gradativa com que o argumento desvenda os segredos por trás desta
invasão. Sem recorrer a explanações mirabolantes, a troca de informações mútua
entre humanos e invasores é inteligente e coerente com a proposta intimista do
roteiro, o que fica claro quando nos deparamos com o surpreendente último
ato.
Outro ponto que agrada, e muito, é a perspicácia do argumento ao
utilizar o poder da comunicação como o instrumento para uma bem-vinda crítica
em torno da frágil relação política entre as grandes nações. Com agilidade e
contundência, Denis Villeneuve encontra brechas para expor não só a perigosa
desunião entre os principais líderes nacionais, como também a irracionalidade,
a violência social e a paranoia virtual ao redor do mundo, atitudes que ganham
corpo antes mesmo dos alienígenas revelarem as suas reais motivações. Por mais que as intenções do militares americanos sejam mais racionais, numa abordagem condizente com o atual contexto político, o roteiro é habilidoso ao explorar a enraizada
tradição bélica dos EUA, questionando com objetividade a ignorância por trás dos grandes
conflitos. A alma (e o coração) de A Chegada, porém, reside no arco da Dr.
Louise Banks. Fazendo um impecável uso dos sensíveis flashbacks, que são
costurados à trama com maestria pela fantástica montagem de Joe Walker
(12 Anos de Escravidão), Villeneuve se volta para os lampejos de memória da
linguista ao desvendar as suas sinceras nuances mais íntimas, permitindo que a
protagonista cresça em cena à medida que a sua cumplicidade com os
extraterrestres se torna mais evidente. Da sua incrível jornada, inclusive, nascem
os temas mais humanos e reflexivos, a maioria deles envolvendo o impacto da
morte, a dor do luto e a relatividade do tempo. Questões sentimentais
aparentemente requentadas, que, discutidas sob um singular prisma cíclico,
culminam numa daquelas reviravoltas dignas de aplausos. Um plot criativo e bem
arquitetado que, num primeiro momento, pode até soar incompatível com a proposta
lógica da película, mas que logo revela uma das sequências finais mais belas e
tocantes da história recente do cinema.
Méritos que, indiscutivelmente, precisam ser divididos com a estupenda
performance de Amy Adams. Mais do que uma simples especialista em busca de
respostas, Louise é uma personagem feminina rara, uma mulher brilhante e
resiliente que ganha uma faceta humana nas mãos da talentosa atriz
norte-americana. Comedida em cena, Adams absorve o turbilhão de emoções
enfrentado por sua personagem com extrema sutileza, nos fazendo realmente
enxergar a deterioração física e emocional da linguista durante o processo de
compreensão dos códigos alien. Com um tipo mais retilíneo em mãos, o versátil
Jeremy Renner adiciona uma dose de confiança à trama com o seu Ian, um
cientista irônico e intransigente que logo se vê fascinado pelo ímpeto da sua
parceira de pesquisa. A química profissional entre Adams e Renner, aliás, é
precisamente trabalhada por Dennis Villeneuve, se tornando um elemento decisivo
para a construção do excelente último ato. Ainda sobre o enxuto elenco,
enquanto Forest Whitaker foge do lugar comum ao criar um coronel do exército
mais cerebral e compreensivo, o carismático Michael Stuhlbarg (Trumbo) se
distancia do tom unidimensional ao interpretar um inflexível agente da CIA.
Por fim, como de costume em sua enxuta e preciosa filmografia, Denis
Villeneuve nos presenteia com uma película visualmente refinada. Impecável ao
traduzir o estado de espírito dos seus personagens, o diretor é inicialmente
brilhante ao capturar a sensação de claustrofobia experimentada por Lousie,
valorizada pelos sufocantes enquadramentos, pelos angustiantes takes em
primeira pessoa e pela nebulosa fotografia esbranquiçada de Bradford Young
(Selma: A Voz da Igualdade). Antes disto, porém, Villeneuve nos presenteia com
uma cena inicial intimista e comovente, uma sequência expressiva que me fez lembrar da sensacional abertura de Up: Altas Aventuras (2009). Quando o assunto é a
nave alienígena, aliás, o canadense mostra uma assinatura igualmente particular
ao construir um cenário 'clean' e minimalista. A saída que o diretor encontrou
para destacar a comunicação entre humanos e aliens, por exemplo, é sagaz e
expressiva, uma opção com potencial cinematográfico que remete diretamente a
uma sala de aula. Além disso, Villeneuve é particularmente habilidoso ao
explorar a questão da gravidade dentro do OVNI. Numa opção angustiante, o
realizador brinca com os ângulos e as noções de perspectiva ao arquitetar as
cenas internas, indo do vertical ao horizontal com requintada peculiaridade. A
cereja do bolo, porém, fica para os provocantes acordes de Jóhann Jóhannsson (A
Teoria de Tudo). Ora doce e melancólica, ora pulsante e desconfortável, a
estupenda trilha sonora embala a trama com rara inspiração, transformando o
longa numa experiência sensorial de tirar o chapéu.
Equilibrando razão e emoção com absurda categoria, A Chegada é um Sci-Fi
intrigante e universal que, mesmo diante do seu coeso desfecho, nos oferece a
possibilidade de refletir sobre a sua poderosa mensagem humanitária e talvez
reinterpretar os significados por trás deste engenhoso quebra cabeça
linguístico. Apesar da complexidade do tema proposto, Denis Villeneuve adiciona
mais um triunfo a sua filmografia ao conceber um longa profundo, cru e
objetivo, uma ficção-científica capaz de mexer com os sentimentos do espectador
de maneira completamente imprevisível.
2 comentários:
Não é um dos meus gêneros preferidos, mas a historia foi muito interessante! Os filmes de Amy Adams são cheios do seu estilo, e logo se pode identificar quem esta responsável pela produção. Quando vi Filme Arrival automaticamente vi os detalhes que o caracterizaram realmente é impressionante o trabalho de produção. Eu adorei isso filme!!
Amy Adams é realmente uma atriz completa. E A Chegada é um belo longa. Valeu pela visita e pelo comentário Alex.
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