Mais do que um grande pilar do cinema Sci-Fi, Blade Runner (1982) se
tornou com o passar dos anos um dos títulos mais influentes da cultura pop.
Responsável por estabelecer o que conhecemos como o cenário cyberpunk, o
reflexivo longa dirigido por Ridley Scott ganhou um inquestionável status cultapós o seu fracassado lançamento comercial, levantando uma série de instigantes
discussões em torno da sua mitologia e dos temas propostos pelo escritor Philip
K. Dick. Num relato à frente do seu tempo, o longa propôs um profundo debate
envolvendo a existência humana num ambiente movido pelas inteligências
artificiais e a nossa péssima relação com as novas tecnologias. Entre
replicantes, carros voadores e caçadores de androides, Scott abraçou a
metafísica ao discorrer sobre a humanidade, o medo de desconhecido e a ação
perversa das grandes corporações. Um debate profundo e universal que, ainda
hoje, segue influente. Com a estreia do excepcional Blade Runner 2049 (leia a nossa critica aqui), neste
Top 10 iremos analisar o legado deste verdadeiro clássico oitentista e o
impacto do longa em grandes obras da ficção-científica.
- Cidade das Sombras
(1998)
Imagine um Blade Runner ainda mais sombrio e nebuloso. Esse é Cidade das
Sombras, um Sci-Fi instigante com os dois pés no cinema noir. Sob a batuta do
egípcio Alex Proyas, o mesmo da imperdoável bomba Deuses do Egito, o longa
estrelado por Rufus Sewell narra a desventurada jornada de um detetive
desmemoriado envolvido numa série de estranhos assassinatos. Embora as reviravoltas
da trama apontem o filme para um caminho bem diferente de Blade Runner, Proyas
reverencia o clássico de 1982 ao investir numa película instigante e
contemplativa, uma produção marcada pela ambientação soturna e pela engenhosa
direção de arte. Nas entrelinhas, entretanto, o argumento dialoga com algumas
questões bem próximas do universo idealizado por Ridley Scott, principalmente
quando o longa resolve expor o quão minúsculos nós somos diante das grandes
corporações. Apesar das diferenças, a metáfora proposta por Proyas não só
dialoga com o teor reflexivo de Blade Runner, como respeita o legado deste
'hit' cult.
- Eu, Robô (2004)
O próprio Alex Proya, aliás, voltou a beber da fonte Blade Runner no
blockbuster Eu, Robô. Com Will Smith no papel de um detetive
"ultrapassado" num universo em que os robôs se tornaram decisivos
para a redução do crime, o longa reaquece algumas das discussões mais primárias
do visionário 'hit' oitentista ao propor um instigante debate existencial
envolvendo a presença da inteligência artificial na nossa sociedade. Apesar do
visual 'clean' e a pegada 'hi-tech' se distanciar do pessimismo cyberpunk
pintado por Ridley Scott, Eu, Robô surge como uma atualização, uma obra que,
embora "ande com as suas pernas", resgata a mitologia do clássico de
1982 numa inteligente proposta mais acessível. O resultado é um envolvente
thriller de ação, um filme pipoca capaz de reutilizar os arquétipos do criador
Philip K. Dick com sagacidade e identidade própria. É bom frisar, entretanto,
que Eu, Robô é uma adaptação da obra de Isaac Asimov, o clássico homônimo de
1950 que, ao estabelecer as leis da robótica, também influenciou obras como
Blade Runner.
- Ela (2013)
Esse é um caso realmente interessante. Um dos filmes 'indies' mais
inteligentes dos últimos anos, Ela (leia a nossa critica aqui) conseguiu flertar com alguns dos temas mais
instigantes de Blade Runner sob um prisma íntimo e afetuoso. Enquanto o
clássico de 1982 discutiu a existência dentro de um contexto bélico e
pessimista, o longa dirigido por Spike Jonze avançou no debate idealizado por
Philip K. Dick ao discutir os relacionamentos humanos dentro de uma sociedade
regida pela tecnologia. Com uma ambientação leve e colorida, uma proposta
criativa capaz de equilibrar o 'hi-tech' com o 'vintage' de maneira completamente
original, o realizador norte-americano troca os replicantes pela inteligência
artificial ao narrar as desventuras amorosas de um homem solitário que se
apaixona pela sua assistente virtual. Impulsionado pelas magníficas
performances de Scarlett Johansson e Joaquin Phoenix, Jonze levanta uma série
de preciosas questões envolvendo a diluição das barreiras entre o real e o
virtual na nossa sociedade. Além de propor um interessante debate envolvendo os
conflitos existenciais em torno da figura de Samantha, Jonze é astuto ao
reproduzir alguns dos temas presentes no 'hit' cult oitentista, aproximando o
protagonista da figura de Deckard ao falar sobre a solidão, a apatia social e a
virtualização dos sentimentos. Embora sofra com a falta de ritmo em alguns
momentos, as 2 h e 5 min de película, a meu ver, soam cansativas, Ela causou um
impacto tão grande junto aos fãs do Sci-Fi que passou de influenciado à
influência. Na verdade, impecável ao atualizar a mitologia original, Blade
Runner 2049 esbanjou perspicácia ao dialogar com alguns dos temas debatidos
acima, buscando referência na obra de Spike Jonze ao encontrar brechas para a
construção de uma comovente história de amor "virtual".
- O Vingador do Futuro (1990)
Assim como Alex Proyas, o holandês Paul Verhoeven também fez jus ao
legado de Blade Runner em duas das suas mais populares produções. Em O Vingador
do Futuro, o realizador reverenciou o visual do clássico oitentista ao flertar
com a ambientação cyberpunk idealizada por Ridley Scott dentro de um contexto, digamos,
bem mais exótico. Por mais que o argumento também faça referências clássicas ao
cultuado Sci-Fi, a memória, aqui, serve como o ponto de partida para a jornada
do protagonista, o construtor Douglas Quaid (Arnold Schwarzenneger), é no
aspecto visual que a presença de Blade Runner soa mais clara. Guardada as
devidas proporções, os gadgets, o futuro distópico e o visual excêntrico dos
personagens soa bem reconhecível aos olhos dos fãs de Blade Runner, uma
construção de mundo reverente marcada pelo reconhecido toque de originalidade
de Paul Verhoeven.
- Robocop (1987)
O realizador holandês, entretanto, resolveu se aprofundar na mitologia
Blade Runner em Robocop: O Policial do Futuro. Embora não faça parte do
universo cyberpunk, o conceito defendido por Paul Verhoeven neste clássico
oitentista remete diretamente ao clássico de Ridley Scott, principalmente
quando o assunto é o cenário violento, a ação perversa das grandes corporações
e a opressão sobre a criatura ciborgue. Na trama, após ser morto em ação, o
corpo do policial Alex Murphy (Peter Weller) é reutilizado pela OCP, uma
empresa do ramo de segurança disposta a acabar com o crime usando robôs. Após
um início promissor, o projeto passa a enfrentar alguns problemas quando Alex
começa a se lembrar da sua "vida" passada, recuperando a sua
identidade à medida que percebe os interesses escusos dos seus
"superiores". Assim como a figura dos replicantes, o Robocop padece
diante da pretensa superioridade dos seus "criadores", um arco
existencial conduzido com pulso por Paul Verhoeven. Além disso, o longa abraça
o teor crítico ao questionar o 'modus operandi' das grandes corporações,
tornando a OCP uma espécie de "primo distante" da Tyrell Corporation.
- Gattaca (1997)
Uma das minhas ficções-científicas prediletas, veja o nosso Top 10 sobre o gênero, Gattaca vai ao cerne de
Blade Runner ao construir um universo dividido entre seres criados em
laboratório e a humanidade. Numa proposta inversa a defendida por Ridley Scott,
o longa dirigido e roteirizado por Andrew Niccol se passa num futuro 'hi-tech'
em que os indivíduos "geneticamente modificados" eram considerados
superiores, humanos perfeitos, enquanto os biologicamente criados viviam às
margens lutando por trabalhos "menores" e sofrendo com o preconceito
enraizado. Com grandes aspirações, o "inválido" Vincent Freeman
(Ethan Hawke, excelente) sonhava em fazer uma viagem espacial, mas a sua
condição humana o impedia de tal feito. Tudo muda, no entanto, quando ele
conhece Jerome (Jude Law), um homem geneticamente modificado preso a uma cadeira
de rodas. Disposto a tornar o sonho de Vincent possível, ele resolve ajuda-lo
numa perigosa empreitada, sem saber que um inesperado crime poderia revelar
este segredo. Através de diálogos inteligentes, Niccol investiga com rara
inspiração o lado mais resiliente da natureza humana, um tema que ganha
contornos ainda mais instigante graças ao crítico pano de fundo social. Da
relação entre Vincent e o paraplégico Jerome (Law), aliás, nascem alguns dos
mais reflexivos diálogos do longa, principalmente quando aponta para os limites
da existência humana e a nossa relação com a tecnologia genética. Na verdade,
Gattaca pode ser então encarado como uma espécie de universo paralelo de Blade
Runner, um relato de como seria o nosso modo de vida em sociedade se os
replicante tivessem conseguido a sua "independência" e a sua
humanidade reconhecida por nós, “reles mortais”.
- Akira (1988)
Poucos filmes, entretanto, beberam tanto (e tão bem) da fonte Blade
Runner quanto o cultuado anime Akira (leia a nossa opinião aqui). Sob a vigorosa batuta de Katsuhiro Ôtomo,
o longa revolucionou a indústria da animação ao criar um cenário cyberpunk
totalmente reverente ao idealizado por Ridley Scott. Fazendo um magnífico uso
das cores e do neon, o realizador nipônico brilha ao capturar a efervescência
urbana, o choque cultural e a degradação do nosso estilo de vida presente no
cultuado 'hit' de 1982, preparando o terreno para a construção de uma história
genuinamente reconhecível aos olhos dos fãs de Blade Runner. Embora o assunto
em questão não sejam os replicantes, Akira instiga ao dialogar com outros temas
presentes na obra de Philip K. Dick, entre eles os escusos interesses
governamentais, os perigos em torno das experiências científicas e o pessimismo
quanto a nossa existência numa sociedade consumida pela tecnologia. Em suma,
Akira é um filmaço, uma obra anárquica, inquietante e ainda hoje atual que,
indiscutivelmente, soube reinterpretar os conceitos discutidos em Blade Runner
sob um prisma original e realmente impactante.
- Matrix (1999)
Quando o assunto é reprodução da visão distópica pessimista defendida
por Blade Runner, no entanto, Matrix segue sendo a obra que melhor sobre
compreender as visionárias discussões propostas pelo clássico de 1982. Lançado
no auge da era da Informação, o longa dirigido pelas irmãs Lana e Lili
Wachovski avançou o debate envolvendo a nossa relação com as tecnologias ao
revelar um futuro distópico onde a humanidade foi "controlada" pela
tecnologia. Uma força muito mais perigosa que os replicantes, a Matrix surge
como a síntese da ameaça proposta por Scott, a criatura subjugando o criador em
troca de uma vida\experiência virtual. Neste cenário, Neo (Keanu Reeves) surge
como o "salvador da pátria", um hacker astuto que, da noite para o
dia, se torna uma peça chave na luta pela independência humana. Influenciado
pela visão de futuro pintada em Blade Runner, as irmãs Wachovski conseguiram
reinventar o conceito visual mirando a onda sombria\gótica que tomou conta da
segunda metade dos anos 1990, respeitando o legado do 'hit' cult sem esquecer
de atualizar o debate proposto. O resultado é uma verdadeira obra prima, um
filme instigante que, tal qual O Caçador de Androides, segue levantando
inquietantes discussões acerca da nossa realidade num mundo
tecnológico\virtualizado.
- Ex_Machina (2014)
Concentrado na figura do replicante\inteligência artificial, Ex_Machina (leia a nossa critica aqui) levanta uma série de inventivas questões existenciais ao discutir a nossa
humanidade sob um ponto de vista realmente original. Apesar das inúmeras
referências estéticas ao clássico Blade Runner, principalmente quando o assunto
é o uso das cores\neon na composição da atmosfera, o longa dirigido por Alex
Garland "filtra" o clássico ao se concentrar nas questões mais
densas, usando a nossa pretensa superioridade ao discorrer sobre o que define a
nossa existência\humanidade dentro de um ambiente 'hi-tech'. Na trama, um jovem
programador (Domhnall Gleeson) se depara com a chance da sua vida no momento em
que é selecionado por um gênio da tecnologia, o poderoso Nathan (Oscar Isaac),
para participar de uma série de testes envolvendo a criação de um novo modelo
de IA, a sedutora Ava (Alicia Vikander). Trazendo nas entrelinhas uma forte
mensagem feminista, Garland instiga ao usar um ser cibertrônico para refletir
sobre as nossas "falhas de programação". Numa mistura de Prys (Daryl
Hannah) com Rachel (Sean Young), Ava surge como uma figura em busca do seu
próprio destino, uma personagem inteligente capaz de se rebelar contra o seu
'status quo'. Na verdade, assim como Eu, Robô, Ela e Robocop, Ex_Machina bebe
da fonte Blade Runner ao se concentrar na relação entre humanos e
"replicantes", uma obra concisa, imersiva, mas igualmente genial.
- Ghost in The Shell (1995)
Por fim, a obra que melhor soube explorar o legado de Blade Runner.
Adaptação do cultuado mangá de Shirrow Masamune, Ghost in The Shell (leia a nossa opinião aqui) reciclou a
maior parte das discussões presentes na obra de Philip K. Dick numa animação
inteligente e questionadora. Fiel ao teor contemplativo proposto por Ridley
Scott no clássico oitentista, o diretor Mamoru Oshii ajudou a popularizar o
conceito cyberpunk ao investir numa ambientação suja e 'hi-tech', um contraste
brilhantemente reproduzido ao longo da película. Embora a reverência visual
chame a atenção, o realizador nipônico é igualmente perspicaz ao dialogar com
os temas presentes em O Caçador de Androides, transformando a indomável Major
numa das grandes heroínas do Sci-Fi moderno. Assim como o Blade Runner
original, Oshii usa a metafísica para debater o existencialismo presente no
mangá, colocando a memória no centro da trama ao refletir sobre as experiências
humanas e a diluição das barreiras entre o real e o virtual num mundo regido
pela tecnologia. Somado a isso, o longa animado é igualmente habilidoso ao se
insurgir contra as grandes corporações, realçando a corrupção e a perversidade
política ao descobrir os seus verdadeiros inimigos. Tecendo ainda um visionário
comentário sobre o ciberterrorismo e a perda da identidade neste cenário
virtual, Ghost in The Shell é uma obra à frente do seu tempo, uma animação
reflexiva capaz de transitar por uma vasta gama de temas com profundidade e
propriedade. Em tempo, apesar da simplificação temática, sigo defendendo que a
adaptação hollywoodiana estrelada pela magnética Scarlett Johansson faz um
ótimo trabalho ao discorrer sobre os conceitos presentes na versão animada. O
debate pode até não ser dos mais profundos, mas o conteúdo está todo lá.
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