Velho mágico, novos truques
Esbanjando uma energia invejável e o seu reconhecido rigor técnico, Ridley Scott retorna em grande estilo à ficção científica no espirituoso Perdido em Marte. Um dos grandes idealizadores por trás dos sombrios Alien - O Oitavo Passageiro (1979) e Blade Runner - O Caçador de Androides (1982), o realizador se reinventa ao universalizar o gênero que o consagrou, entregando um divertido Sci-Fi pop que em nenhum momento subestima a inteligência do espectador. Embalado por hits da Disco Music e pela soberba atuação de Matt Damon, Scott consegue valorizar o entretenimento sem abrir mão do pano de fundo científico, nos brindando com um longa intenso, realístico, inteligente e inesperadamente bem humorado. Uma aventura espacial autoral e visualmente magnífica, que aproveita com rara inspiração o vácuo aberto pelos recentes sucessos de Gravidade (2013) e Interestelar (2014).
Revelando de maneira verossímil os bastidores de uma missão espacial da Nasa, o argumento assinado por Drew Goddard, inspirado no livro homônimo de Andy Weir, impressiona ao reproduzir com extrema agilidade as complexas questões científicas tão inerentes a um Sci-Fi de respeito. Através de explicações objetivas, pertinentes e espertamente intuitivas, o roteiro injeta ritmo ao abordar assuntos naturalmente difíceis, tornando palatáveis e nada mirabolantes as lições dos protagonistas sobre química, botânica e todas as particularidades espaciais. Desta forma, alimentando uma bem vinda pegada blockbuster, o longa narra a incrível jornada do astronauta Mark Watney (Damon), um dos membros de uma importante missão de reconhecimento em Marte. Surpreendidos por uma tempestade, a equipe comandada pela capitã Lewis (Jessica Chastain) consegue fugir, mas Watney é atingido por uma antena e acaba ficando para trás. Acreditando que ele estava morto, Lewis e o resto da tripulação deixam Marte em segurança. Para surpresa de todos, no entanto, Watney sobrevive. Isolado num território hostil e com poucos suprimentos, o astronauta decide lutar por sua vida, mesmo sabendo que uma missão de resgate poderia demorar vários anos para sair do papel.
Não se contentando em explorar o lado mais fantástico desta trama, neste caso a perseverante luta de um homem para sobreviver num planeta completamente estranho, Perdido em Marte é praticamente impecável ao pintar esta jornada sob diversos pontos de vista. Por mais que o quase naturalista processo de "adaptação" de Watney em Marte seja o principal trunfo do simples roteiro, Ridley Scott é igualmente zeloso ao desenvolver as demais subtramas. Acompanhando de perto não só o esforço dos executivos da Nasa no resgate do astronauta perdido, mas também o drama dos sobreviventes durante a viagem de volta para Terra, o realizador permite que os personagens de apoio tenham verdadeira importância para o andamento do longa. Em meio a situações tão particulares, por si só atraentes para o público, Scott encontra ainda tempo para mostrar o 'modus operandi' da agência espacial norte-americana. Sem apelar para a patriotada, conhecemos através de ágeis diálogos um pouco do trabalho por trás das missões espaciais, incluindo o marketing, os assuntos tecnológicos e - até mesmo - as questões mais políticas. A contida figura do diretor interpretada pelo sempre competente Jeff Daniels, aliás, se revela muito importante ao longo da trama, principalmente por levantar pontuais dilemas morais em torno desta desesperada tentativa de resgate. Situações que, diga-se de passagem, são desenvolvidas sem um pingo de sentimentalismo, ressaltando a frieza e o raciocínio lógico dos astronautas.
A partir deste versátil argumento, que flerta com a tensão, o humor e o drama de maneira absolutamente inspirada, Scott costura com fluidez estas diversas passagens, imprimindo uma evidente pegada pop ao apostar em soluções originais. A começar pela forma sagaz com que explora o "isolamento" do espirituoso protagonista. Numa sacada - me arrisco a dizer - genial, o veterano realizador opta por quebrar a quarta barreira, permitindo que o seu protagonista se comunique por várias vezes com o espectador. Na verdade, fugindo das divagações sem sentido, Watney fala através do seu diário de bordo, revelando uma afiada veia cômica ao contar os seus planos para sobreviver em Marte. Uma opção simples, mas extremamente funcional, que se encaixa brilhantemente na proposta mais universal defendida pelo longa. E Scott não para por ai. Em meio a uma série de referência à cultura pop, até o Homem de Ferro é citado no sufocante clímax, o diretor arrisca ao apostar numa trilha sonora recheada de clássicos da Disco Music. Numa piada recorrente envolvendo o repertório musical escolhido pela capitã Lewis, Scott faz deste irreverente setlist uma ferramenta poderosa, adicionando energia a algumas sequência mais repetitivas. Num dos pontos altos da película, inclusive, o hit setentista "Starman" é o escolhido para embalar uma belíssima sequência de transição, adotando uma estética quase de videoclipe.
Não coloque em dúvida, porém, a verossimilhança de Perdido em Marte. Apesar das irreverentes escolhas, Ridley Scott produz um dos trabalhos mais críveis quando o assunto é o planeta vermelho. Embasadas teoricamente pela Nasa, que deu o aval para a produção e serviu como consultora do filme, a maioria das estratégias pensadas por Watney são factíveis, assim como os bastidores envolvendo o planejamento da missão de resgate. Realismo que, sem dúvida alguma, só é potencializado pelos extraordinários efeitos visuais. Amparado pela radiante fotografia de Dariusz Wolski, que já havia trabalhado com Scott no sombrio (e subestimado) Prometheus, o diretor tirou um enorme proveito dos sets de filmagem no avermelhado deserto de Wadi Rum, na Jordânia, simulando com extrema perícia o solo e as condições de Marte. Além disso, num trabalho à altura das principais produções do gênero, as sequências espaciais são de tirar o fôlego. Mesmo ocupando um menor espaço dentro da película, Scott nos brinda com um grandioso balé gravitacional, explorando com maestria o detalhista cenário da nave Hermes e o já elogiado clímax. Nada, no entanto, supera a carismática presença de Matt Damon, num daqueles tipos que merecem ser salvos. Mesmo não sendo o centro das atenções, já que nomes como os de Jessica Chastain, Michael Peña, Sean Bean e Chiwetel Ejiofor dividem os holofotes com louvor, Damon é convincente ao construir um astronauta confiante e espirituoso. Um protagonista que cresce ao longo da projeção, revelando por trás de tamanho otimismo sentimentos humanos como o medo, a tensão e a raiva. Emoções capturadas com enorme sutileza pelo talentoso ator.
Se arriscando ao cultivar uma inesperada atmosfera descompromissada, o experiente Ridley Scott mostra em Perdido em Marte que um velho mágico ainda pode guardar novos truques. Fazendo um sofisticado uso do 3-D, que só amplia a sensação de angústia ao longo da turbulenta jornada de sobrevivência do protagonista, esta autoral aventura espacial empolga ao injetar uma invejável dose de vigor a ficção científica, se distanciando quase que por completo das mais recentes e aclamadas produções do gênero. Na verdade, à critério de comparação, o metafórico Gravidade, o mirabolante Interestelar e o irreverente Perdido em Marte têm apenas em comum o fato de comprovarem que a profissão astronauta está longe de ser uma das mais confortáveis.
Nenhum comentário:
Postar um comentário