sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Crítica | Em "Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis" a rica cultura asiática é consumida pela megalomania ocidental num filme tão divertido quanto desastrado



É sintomático perceber que, após o apoteótico fim de ciclo estabelecido pela dobradinha Vingadores: Guerra Infinita e Ultimato, a fase 4 do MCU começou a ganhar forma a partir de peças que durante uma década foram (no mínimo) subvalorizadas dentro da franquia. Uma tendência que, de certa forma, aproxima Viúva Negra e Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis.

Embora produções com naturezas distintas, os dois títulos partem de uma zona de "culpa'' dentro da Marvel Studios. Natasha Romanoff foi, durante um tempo longo demais, um mero bibelô fetichista nas mãos de uma engrenagem incapaz de reconhecer a representatividade desta querida personagem. Seu filme solo, numa decisão anticlimática, nasceu no projeto seguinte à morte da Vingadora. Uma obra importante, mas fora de timing

Shang-Chi, por sua vez, não parece tão deslocado no tempo e no espaço assim. Fica claro, no entanto, que o longa de Destin Daniel Cretton chega para reparar um dos grandes equívocos criativos do MCU: a falta de representatividade asiática na franquia. Nas duas oportunidades anteriores, em Homem de Ferro 3 e Doutor Estranho, a Marvel Studios preferiu a ocidentalização de personagens como o Mandarim (agora apenas uma piada ruim) e a Anciã. O que, levando em consideração o viés mercadológico, se revelou um constrangimento.

Disposto a mudar esse cenário, Shang-Chi tenta recuperar o tempo perdido numa produção disposta a capturar a riqueza cultural asiática em sua máxima potência. A ideia era transformar o personagem numa ponte para a construção de uma obra representativa. Influenciado pelo hit Pantera Negra, Cretton conceitua o longa seguindo uma lógica oriental pop atrativa. As referências ao cinema de Hong Kong ditam o rumo do empolgante primeiro ato. Em Shang-Chi, o casamento entre o tradicional e o urbano é inicialmente perfeito. A plasticidade das sequências mitológicas combina com a eletricidade das imagéticas cenas de luta em San Francisco e Macau. É cinema de ação com ideias regido por um senso de plasticidade, beleza e humor que diverte. Uma mistura convidativa que contrasta positivamente com a construção da ameaça aqui.

Após perder a sua esposa e se afastar dos filhos, Wenwu (Tony Leung) resolve "reunir" a família por motivos um tanto obscuros. Enquanto Shang-Chi se revela um herói puro e carismático (a dobradinha entre Simu Liu e Awkwafina rende passagens hilárias), o vilão traz consigo um senso de amargor que preenche a trama. Ter o intenso Tony Leung na figura deste interessante antagonista (um dos mais humanos do MCU) é um luxo.

Cretton extrai o máximo do expressivo elenco tanto na construção das passagens mais intimistas, quanto nas sequências em que a pancadaria come solta. É refrescante, aliás, ver o Kung-Fu sendo abordado com tanta potência dentro do MCU. Por trás da representatividade, contudo, existe um filme afoito.

É frustrante notar como, gradativamente, a vivacidade oriental é consumida pela megalomania ocidental. Em Shang-Chi, tal qual em Viúva Negra, as virtudes são tão óbvias quanto as falhas. Com material muito vasto para um único filme (o que revela o descaso da Marvel Studios com esse universo), o realizador é desastrado ao trocar o cenário urbano pelo fantasioso. O CGI plastificado é o menor dos problemas numa obra com soluções narrativas pobres e facilitações que enfraquecem o estudo dos personagens. A jornada do herói é conduzida com um misto de descuido e pressa que incomoda.

Sempre que precisa olhar para a intimidade do protagonista, o longa recorre a flashbacks mal orquestrados pensados para didatizar aquilo que deveria ser desenvolvido. Liu, na verdade, segura o filme no carisma e na entrega física. Falta a Shang-Chi o peso representativo do rei T'challa (Chadwick Boseman). Embora fale mandarim e goste de karaokês, o personagem traz consigo uma veia ocidental que destoa da proposta do longa. A sua irmã, a impetuosa Xialing (Meng'er Zhang), parece uma personagem bem mais representativa neste aspecto. Ela é o rosto de uma China moderna, empoderada e (claro!) capitalista. A crise de identidade de Shang-Chi em solo asiático prometia, mas o roteiro prefere trocar a construção do protagonista pela introdução de um cenário mitológico envolvendo dragões milenares e leões alados.

Uma Nárnia asiática que só serve à grandiloquência vazia do clímax. No afã de mergulhar na cultura oriental, Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis busca referências nos lugares certos, mas se recusa a desenvolvê-las. Uma abordagem que, embora não prejudique o fator diversão, torna este promissor novo núcleo mais expressivo do que relevante dentro da engrenagem do MCU.

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