terça-feira, 19 de outubro de 2021

Crítica | Deslocado no tempo e no espaço, "Maligno" defende o absurdo no cinema de horror num filme que desafia a ditadura do verossímil


Numa época em que o cinema de horror parece tão refém da "ditadura do verossímil", Maligno surge como um oásis de ideias em meio a um marasmo criativo. Contrariando tendências limitantes, o longa de James Wan explora o real para glorificar o absurdo. Poucas vezes vi um realizador jogar tão limpo com o público sem sacrificar o senso de originalidade do seu projeto. O cineasta não tolera a ideia de que o choque tem que estar ligado à revelação. Um mero protocolo para ele aqui. A imprevisibilidade em Maligno está na maneira com que Wan exercita o cinema de horror. Nas provocativas escolhas de um diretor disposto a testar as expectativas do público a partir do que esperamos ver de um segmento cada vez mais higienizado.

Wan tem culpa nesse cartório. O cineasta que chocou Hollywood com o brutal Jogos Mortais e depois revitalizou os filmes de "casa mal assombrada" com o irreverente Sobrenatural, se rendeu a um formato mais engessado no multiverso Invocação do Mal. Wan se acomodou. Wan se tornou o "garoto de ouro" da Warner Bros. Wan se tornou um agente da pasteurização no cinema de horror moderno. Ninguém discute, porém, o domínio do realizador sobre o gênero. O que ele precisava era de uma volta às origens. Uma carta branca. Um direito finalmente conquistado.

Maligno é o que acontece quando um diretor autoral (repito, autoral) ganha total controle criativo sobre a sua produção. É fascinante ver como ele consegue criar algo só seu a partir de uma amálgama do que melhor o segmento ofereceu nas últimas sete décadas. Do body horror de David Cronenberg ao suspense psicológico de Alfred Hitchcock. Da exuberância estética do Giallo de Dario Argento ao trash irreverente de Sam Raimi. Wan se "alimenta" dos grandes para reoxigenar o gênero. Um senso de generosidade admirável. É como se ele, por conta própria, não fosse capaz de desafiar a lógica realista que tomou conta do segmento. Ele precisava de ajuda. Ele mergulhou na fonte certa.

Em Maligno, o porque se torna irrelevante diante da forma com que o diretor arquiteta o horror. Pouco importa se você vai antecipar ou não os desdobramentos de um plot envolvendo uma jovem atormentada por visões de crimes brutais e por um assombroso serial killer. O curioso estudo psicológico proposto através da estética do absurdo se torna menor à medida que notamos a inventividade autorreferente de Wan ao traduzir o desespero da protagonista. Os ataques do sinistro vilão não poderiam ser mais imagéticos. A sua apavorante presença disforme não poderia ser mais inquietante. As histriônicas reações de desespero da corajosa atriz Annabelle Wallis não poderiam ser mais sugestivas. Wan confia na sua visão de horror. Ele confia que o público não desaprendeu a ver um filme do segmento.

Maligno não tem medo de sujar as mãos. O realizador se orgulha em tornar o bizarro o mais imagético possível. É terror pensado nos detalhes (as referências são um prato cheio para os fãs do gênero), mas que preza pelo exagero. A afetação fica evidente no senso de grandiloquência com que a câmera passeia pelos cenários estabelecendo a imersão na nebulosa atmosfera construída. Na originalidade com que Wan explora signos reconhecíveis sem sacrificar o doce sabor do choque gerado por uma imagem grotesca. Na fotografia cintilante em tons de vermelho Suspiria (1970) que emula Dario Argento a fim de estabelecer a angústia da protagonista diante de algo que ela não podia controlar.

O horror aqui não é subjetivo. É impressionante como, dentro da lógica fantástica defendida com unhas e dentes pelo roteiro, as absurdas escolhas de Wan fazem sentido. Da desconjuntada maneira com que o antagonista se move (num trabalho antológico da contorcionista Marina Mazepa) às reações de Madison diante das assombrosas visões. Do corajoso uso do alívio cômico na figura de Sidney (Maddie Hasson, ótima) à descartável função narrativa dos caricatos policiais vividos por George Young e Michole Briana White.

James Wan sabe como explorar estes elementos a fim de potencializar o entretenimento. Ele sabe também como preencher a trama com dilemas sólidos que vão além do absurdo pelo absurdo. A brutalidade do mundo real gera a disfuncionalidade. A perda de controle feminino é um tema central na trama. O ódio cego alimentado pelo abandono traz substância ao arco da protagonista. Embora se explique além do necessário no terceiro ato, o roteiro sustenta o alucinante espetáculo visual com um olhar próprio sobre a repressão patológica. Uma prova que o gênero pode transitar por temas de natureza complexa sem sacrificar a diversão. Só um cineasta com total domínio sobre o terror tiraria da cartola uma sequência como a do ataque da prisão. Um espetáculo visual de primeira.

Maligno explícita quando a maioria prefere esconder. Maligno assume o absurdo quando a maioria prefere a verossimilhança. É cinema de horror deslocado no tempo e no espaço. Esqueça os "clichês" saudosistas do tipo é uma "carta de amor ao gênero". Maligno é resistência. James Wan se agarra a maneirismos para renovar o status quo do cinema de horror. Viva o absurdo!

#makehorrormoviesfunagain

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