quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Crítica | "O Baile das Loucas" intriga ao usar o paranormal para a atacar os fantasmas de um patriarcal mundo real


O que é insano no mundo em que  vivemos? O que pode ser insano numa sociedade que “tolera” o machismo, a misoginia, o racismo, a desigualdade e todo o tipo de preconceito? Para a jovem Eugene (Lou de Laâge, pura intensidade), a insanidade estava atrelada a um dom. Ela podia ouvir os mortos. Em nenhum momento O Baile das Loucas duvida disso. O imersivo longa dirigido por Mélanie Laurent (cada vez mais madura por trás das câmeras) desconforta ao usar o "paranormal" para expurgar os fantasmas do mundo real. Os fantasmas que habitam entre nós. Os fantasmas que impõem a dor e também os que são aprisionados por ela. Duvidar da protagonista seria endossar a mentalidade dessas assombrações. Duvidar dela seria perder a chance de mergulhar num microcosmo com muito a dizer sobre os tormentos gerados por uma estrutura patriarcal. 


É fascinante ver como Laurent aplica as convenções do cinema de horror dentro de um contexto estritamente dramático. No fim do século XIX, numa época em que mulheres não se encaixavam aos padrões eram internadas em sanatórios, Eugene paga o preço por não ceder. Mesmo diante de manifestações que não podia controlar, a jovem é pega de surpresa quando o seu insensível pai e o seu inerte irmão decidem colocá-la numa instituição para pacientes mentalmente instáveis. 


O Baile das Loucas é enfático ao usar a sanidade da protagonista para expor as sequelas geradas pelo mundo em que ela habitava. O paranormal surge como uma lupa simbólica para o mundo real. Os fantasmas podem ser facilmente interpretados como o mal que cerca uma mulher independente num meio repressor. O pânico traduzido em tela por Laâge é revelador. Os fantasmas tomam Eugene. Ela se vê presa ao tormento alheio. E se os fantasmas forem essas mulheres esquecidas/subjugadas/condenadas por serem mulheres?


É dilacerante ver como, após flertar com elementos do cinema de horror no elegante primeiro ato, a cineasta traz a ameaça para o plano físico ao ouvir a angústia das suas personagens. Laurent enxerga um padrão ao reconhecer os "dons" daquelas mulheres aprisionadas. "O seu corpo se adapta a tudo", diz a gentil Louise (Lomane de Dietrich, cativante) na tentativa de confortar Eugene após ela ser submetida a um torturante tratamento experimental. Uma frase que ecoa. Não demora muito para descobrirmos que o corpo da iludida jovem nunca se "adaptou" ao abuso na infância. As cicatrizes, aqui, são mais emocionais do que físicas. 


Laurent impacta ao tratar a loucura como uma sequela. Os "fantasmas" de Eugene revelam a dor reprimida. Os fantasmas revelam um círculo vicioso em torno de uma estrutura deformada. A diretora, porém, não depende só deles para expor uma dura realidade. Com olhar severamente crítico, a realizadora expõe a podridão escondida nas aparências. Ela usa o paranormal para escancarar a irracionalidade na repulsiva "ciência" dos "nobres" homens machistas. 


Embora se renda à soluções maniqueístas para aquecer a trama (a enfermeira megera vivida por Emmanuelle Beccort é uma escolha fácil), Laurent compensa ao aproximar a rotina de abusos naquela instalação da realidade de uma sociedade patriarcal. Não à toa, os fantasmas estão sempre ligados ao feminino. O melhor de O Baile das Loucas, contudo, está na maneira com que o filme enxerga a sororidade forjada na dor. Por mais que o argumento se prenda demais à concessiva relação entre Eugene e a enfermeira Geneviève (vivida pela própria diretora), Laurent exalta a resiliência em meio ao caos humano ao solidificar os laços entre as internas. A esperança surge do reconhecimento mútuo. Uma opção que adiciona novas tintas a este complexo retrato de época. 


Em O Baile das Loucas, a insanidade é um refúgio. A diretora invade um cenário podre disposta a trazer a realidade daquelas mulheres para o presente. Ela cria texturas a partir do uso da iluminação natural para expor as sombras que acompanham o feminino num meio desigual. O tipo de fantasma que, sozinha, nenhuma mulher do mundo é capaz de exorcizar.


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