quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Crítica | Tio Frank

A morte da homofobia

A homofobia, no cinema, costuma ser frequentemente associada a violência física. Um reducionismo facilmente explicável. Estamos diante de um tema tabu muitas vezes estudado sob a perspectiva (ora bem-intencionada, ora apenas oportunista) de quem nunca sentiu na pele esta pesada mazela social. Uma visão simplista que dialoga com a falta de voz de homens e mulheres capazes de realmente investigar o assunto em sua máxima complexidade. Numa comparação nem tão direta, mas pertinente, basta ver a diferença de um filme condescendente como Green Book, para uma obra feroz como Infiltrado na Klan. Ambos dramas raciais baseados em fatos. Ambos frutos de um mesmo contexto. Um dirigido por um cineasta branco, o outro por um realizador negro. Os contrastes gritam em tela. Nem preciso me aprofundar neles. Representatividade importa. O que fica claro quando nos deparamos com um título como o sensível Tio Frank. Escrito e dirigido por Alan Ball, uma voz ativa dentro da comunidade LGBT norte-americana, o longa estrelado por um magnífico Paul Bettany impacta ao revelar o outro lado da homofobia. O preconceito que cala, que causa feridas íntimas, que afasta e traumatiza. 

Não existe espaço para maniqueísmos baratos aqui. O cineasta se concentra na sutileza autoimposta. Filho do interior da América, Frank foi moldado por um meio conservador, impositivo e (claro!) homofóbico. Ser gay nesta realidade não era saudável. Ser gay neste contexto era doloroso, perigoso e solitário. Foi esse o ambiente que moldou Frank. Foi nele que ele desenvolveu a sua personalidade. O foco, porém, não está na formação. Em Tio Frank, Alan Ball foge do lugar comum ao olhar para trás sob a óptica de um homem aparentemente seguro de si. Um professor universitário respeitado, com uma vida estável, tranquilo ao assumir a sua sexualidade numa Nova Iorque diversificada. A serenidade cautelosa dele, no entanto, escondia algo. Seu companheiro de longa data, o carismático Wally (Peter Macdissi, à vontade), sabia disso. Sua querida sobrinha, a curiosa Beth (Sophia Lillis, radiante como de costume), sabia disso. Uma barreira invisível que é o objeto de estudo proposto por Ball. Quando olha através dela, o cineasta toca em feridas profundas. Sempre com muita cautela e comedimento. O que dialoga com a natureza contida (ou reprimida) do personagem. A admiração que nutre a relação entre sobrinha e tio é apenas o ponto de partida para um sólido estudo de personagem. 

É interessante ver como o cineasta inverte as convenções dos ‘coming of age movies’ à medida que Frank se vê obrigado a confrontar o seu passado. Ele tem mais a aprender do que ela. Ele possui raízes mais profundas que as dela. Embora peça importante dentro da construção narrativa, a empoderada Beth vira uma observadora impotente diante de um arco muito mais complexo que o seu. Um caminho natural que reflete o ótimo senso de prioridade do script. A morte do patriarca da família, o conservador Mac (Stephen Root), recoloca o protagonista numa estrada que ele sempre quis fugir. À medida que se reaproxima da sua casa, Frank se vê obrigado a enfrentar velhos fantasmas. À medida as suas sempre contidas emoções se afloram, Frank se expõe. Por trás dos seus medos, da sua dor e dos seus vícios existia um tabu. O seu grito, a sua raiva e a sua tristeza traziam preconceitos inerentes à sua formação. Um estudo refinado que emociona ao analisar o externo a partir do interno. A homofobia, aqui, é silenciosa, é rotineira, é igualmente destrutiva. Está no olhar, nas palavras, nos atos, na construção da identidade. O quão difícil é renegar o que foi durante muito tempo o padrão? O quão dilacerante é romper com laços moldados desde os primeiros dias das nossas vidas? Poucos filmes investigaram com tanta sobriedade a importância da aprovação familiar na identidade de um homem gay. 

Sem um pingo de didatismo, Alan Ball constrói (e desconstrói) o seu personagem a partir de tudo o que ele deixou pelo caminho. O que traz novos (e autoexplicativos) significados para essa volta para casa. A ausência tem muito a dizer sobre ele. Assim como a saudade, o distanciamento forçado, os segredos em torno das feridas mais profundas e o temor do que estar por vir. Escondido no bloqueio dele existe o sentimento de autoproteção, mas também o peso de uma vida que nunca foi vivida em sua plenitude. Assim, pouco a pouco, o diretor ouve Frank. Assim, com flashbacks pontuais bem introduzidos, um esperto uso das convenções dos road-movies e uma direção intimista sem um pingo de afetação, ele deixa a realidade falar por si só. Talvez o maior predicado de Tio Frank esteja na naturalidade com que a trama mergulha no círculo vicioso gerado pela homofobia. Um predicado potencializado pela maiúscula performance de Paul Bettany. Um ator com total controle sobre as emoções e a desordem do seu personagem. O implícito se torna explícito graças à maturidade com que ele extravasa os conflitos propostos pela trama. Bettany troca a explosão pela implosão. Eleva o nível do apenas funcional ‘mise en scene’ com reações sempre muito complexas. 

Antes mesmo do roteiro ensaiar as suas justificativas, é possível capturar o desconforto de Frank, a raiz dos seus bloqueios, a dor reprimida por uma fachada centrada e inspiradora. Embora o argumento escorregue na curva do sentimentalismo ao fazer do fatalismo um (desnecessário) agente catalisador, Alan Ball compensa ao aproximá-lo da rotina de muitos. Algo que fica claro na única cena verdadeiramente gráfica do longa. O tipo de sequência tão bem construída, tão bem atuada, que soa absolutamente reconhecível. Com destaque para a marcante presença de Stephen Root. O choro do preconceituoso é tão desesperador quanto o da sua vítima. Impulsionado pelo talentosíssimo elenco de apoio, Steve Zahn e Margot Martindale, por sinal, valorizam cada um dos seus (poucos) minutos de tela, Frank transforma a dor causada pela insegurança em poesia visual num filme sobre as feridas que não são visíveis. Um estudo sobre a homofobia que não respeita nem os limites da vida e o efeito dela na identidade de um sobrevivente. Duas palavras: grande filme.

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