domingo, 6 de dezembro de 2020

Crítica | Sound of Metal

 O ruidoso efeito do silêncio

Cinema em sua máxima potência, The Sound of Metal é intenso e virtuoso como um solo de bateria do saudoso Keith Moon. Estamos diante de um drama musical devassado pelo silêncio. Poucas vezes a ausência de som ganhou um sentido tão amplo e complexo. Um elemento narrativo que, graças a expressividade do diretor e roteirista Darius Marder, ajuda a catalisar a experiência. No seu trabalho de estreia na ficção, o promissor cineasta não se contenta em mergulhar na rotina do seu personagem, um baterista em reabilitação química às avessas com a deficiência auditiva. Ele se esforça para nos colocar na perspectiva de Ruben (Riz Ahmed). Uma abordagem subjetiva que, por si só, redimensiona a construção fílmica. A sonoridade, aqui, é tão protagonista quanto o baterista. A fúria incontrolável (e musical) que toma conta da cena de abertura surge como um sintoma. 

A performance visceral do duo formado por Ruben e sua namorada, a talentosa Lou (Olivia Cooke), diz mais do que a princípio sugeria. Ali, na penumbra do palco, estava a essência deles. Através da arte eles exorcizavam a sua raiva, a sua dor, a sua angústia. Esse era o mundo deles. Essa era a maneira que eles encontravam para superar\suportar o caos interno que preenchia o vazio. Darius Marder é categórico ao, desde os primeiros minutos da projeção, extrair um sentido do som. Signos que vão sendo compreendidos à medida que invadimos a intimidade do casal. A música, neste primeiro momento, surge como um escudo. Uma arma contra os estímulos que tanto prejudicaram o jovem casal. Unidos contra a dependência química, Ruben e Lou se sustentavam na base do companheirismo, do afeto e da compreensão. Um ambiente funcional possibilitado pelo rock. Uma bolha pacífica, mas frágil estourada no momento em que o baterista não se sente mais apto para exercer aquilo que tanto amava. 

Em Sound of Metal, o silêncio é também corrosivo. Consome a energia vital de Ruben, um relacionamento forjado na base da cumplicidade e principalmente a audição do protagonista. É interessante ver (e ouvir) como, ao invés de trabalhar o senso de imersão somente a partir do aspecto sensorial (mais à frente me aprofundo nele), Darius Marder é cuidadoso ao usar a deterioração física como a ponte para um estudo de personagem mais complexo. O cineasta usa a vulnerabilidade causada pela deficiência auditiva para invadir a psique do músico. Para investigar o turbilhão de emoções e sentimentos até então “abafados” pelo som do metal. A ansiedade inerente ao nosso estilo de vida, a dependência química, o temor envolvendo a perda do controle. A surdez, aqui, abre uma espécie de porta para o “eu” interior do baterista. O silêncio desconforta não só por representar uma limitação, ou o fim de um sonho, mas por significar a impossibilidade de distração. 

No “vazio sonoro”, Ruben é obrigado a encarar velhos fantasmas. O incômodo nasce da maneira realista com que Darius Marder traduz a tentativa dele em se reencontrar num mundo novo e estranho. Nasce também da absoluta dificuldade do protagonista em se adaptar a este novo compasso. Com um olhar atento para as sequelas geradas por um passado nunca superado, o cineasta esbanja pulso narrativo ao traçar um inquietante paralelo entre a surdez e a falta de rumo de Ruben. O realizador não precisa ser didático para expor a verdade que ele relutava em enxergar. Um problema para o protagonista, a ausência de som ajuda a potencializar o peso dos diálogos. Os gestos são relevantes. As expressões reveladoras. Do choque entre a hiperatividade relutante de Ruben e a serenidade obstinada de Joe (Paul Raci) brotam sequências realisticamente comoventes. Muito em função, é verdade, da forma com que o roteiro respeita as convicções dos dois. Nas entrelinhas, Marder parece, tal qual o seu protagonista, relutar em aceitar o isolamento numa comunidade para deficientes auditivos como a única solução. Assim como as preocupações do seu novo mentor são válidas e reconhecíveis, a aflição do jovem deficiente é compreensível e identificável. 

Ali, frente a frente, estavam os produtos do meio urbano. Ali, naquele micro oásis, estavam dois homens cuspidos pelo mundo. Ali, ao mesmo tempo, estavam dois indivíduos dispostos a lidar com a desconexão seguindo um ritmo próprio. Embora dedique o tempo necessário para construir a jornada de aceitação do protagonista, Sound of Metal comove quando usa a deficiência para refletir sobre a busca de equilíbrio dos personagens. O silêncio que, para Joe, representava paz, para Ruben significava um tormento. Através da desordem do baterista, Darius Marder é delicado ao enxergar a maneira com que ele tentava se sintonizar com o mundo. Os ruídos auditivos, aqui, são transformados num genial instrumento narrativo. Quanto mais ele se esforça, mais ele parece abafado e\ou desconectado. Mais o cenário externo soa incompreensível. O problema físico ilustra o estrago emocional. Um predicado potencializado pelo extraordinário design de som e a forma com que o cineasta integra ele a jornada do protagonista. 

Como se não bastassem as virtudes textuais, Darius Marder comove ao usar a sonoridade como um trampolim para a subjetividade. Ele estreita o vínculo entre o público e o personagem ao nos “roubar” também a audição. Ao realçar, com riqueza de detalhes, as dificuldades de se encarar o mundo sem um dos sentidos. O que torna tudo mais aflitivo, intimista e real. No último ato, em especial, o longa eleva a experiência fílmica ao nos fazer viver o sofrimento do protagonista. Me faltam palavras para definir, por exemplo, o efeito gerado magnífica sequência ao piano. É possível analisar toda a obra a partir dela. A partir da forma com que o realizador usa a sujeira sonora e a barreira linguística para estabelecer o “novo normal” do protagonista. Marder rompe pontualmente o nosso elo com Ruben para logo depois nos reconectar a ele. Quando nós voltamos, porém, tudo ganha um novo sentido. O tipo de cena que nos faz entender o quão duro é o processo de adaptação de um deficiente. O tipo de cena que resume também a fantástica performance de Riz Ahmed. O que o jovem ator faz aqui é algo muito raro. Ele parece refém do seu próprio corpo. Com um olhar penetrante e muita energia reprimida, ele captura a desordem do volátil Reuben com extrema franqueza. Ahmed parece sempre no limite. Sempre próximo da explosão. Sempre exposto ao desespero. Mas nunca reage da forma com que esperamos. 

Um senso de imprevisibilidade valorizado pelo comedimento dramático com que o texto invade a rotina do baterista. Fiel ao aspecto sensorial da obra, Darius Marder é cuidadoso ao nem sempre verbalizar os conflitos. Existem brechas a serem preenchidas. Existem lacunas capazes de redimensionar a trama até os seus últimos minutos. Um pequeno gesto pode ser mais audível do que mil palavras gritadas. Embora se distancie demais da igualmente complexa figura da namorada, uma protagonista ausente que, até pela expressiva atuação de Olivia Cooke, merecia mais tempo de tela, Sound of Metal usa a deficiência como um instrumento de ampliação sonora\narrativa. É senso comum dizer que as pessoas que perdem um dos sentidos acabam, na base do exercício diário, compensando através dos outros. Tomado por essa impressão, Marder trata a surdez como um agente de transformação ao investigar o efeito causado pelo silêncio na identidade de um homem viciado pela sua ruidosa antiga vida. Tudo para sugerir que tão desconcertante quanto a falta de audição é a falta de lucidez. Uma virtude facilmente consumida num mundo caótico e insensível para aqueles que sofrem.



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