terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Crítica | Mank

O outro lado de um clássico

O tipo de projeto que só os mestres ousariam tirar do papel, Mank é a resistência do cinema em tempos de tamanha turbulência. Poucos se arriscariam a emular uma obra do quilate de Cidadão Kane (1941) nos dias de hoje. Poucos iriam além ao se apropriar de um filme deste porte de forma tão pessoal. David Fincher o fez. E com genialidade. Numa análise estrutural e estética, é impossível não traçar um paralelo entre as duas produções. Por mais absurdo que isso possa soar. O cultuado cineasta não se sente intimidado em replicar convenções narrativas, em tratar o hit de Orson Welles como uma bússola artística, nem tão pouco em arquitetar inspiradas rimas visuais entre as duas obras. Fincher sabe que Mank (o filme) não existiria sem Cidadão Kane. Um elo evidente gradativamente quebrado à medida que o roteiro assinado por Jack Fincher (o saudoso pai do cineasta e grande idealizador da produção) troca a reverência pela subversão do formalismo clássico. Em Citizen Kane (no original), Welles usou a grandiloquência e a opulência visual para investigar a amargura de um poderoso magnata da comunicação desafiado pela impotência repentina. Numa abordagem diametralmente oposta, Fincher usa vulnerabilidade e o intimismo para reescrever a história de um subestimado roteirista tentado a (finalmente) assumir a sua grandeza numa Hollywood impiedosa. 

Um choque de abordagem que, por exemplo, fica evidente quando o assunto é a iluminação das cenas. Em Cidadão Kane, a luz reforça o mito. Ilumina a grandiosidade. Por mais que os contrastes pontualmente criados pela acinzentada fotografia em preto e branco de Eric Messerschmidt remetam ao clássico, David Fincher é sagaz ao ofuscar mais do que realçar. A penumbra causa\traz um senso de igualdade. A penumbra traduz também o presente do protagonista, o escritor Herman Mankiewicz (Gary Oldman). Em recuperação após sofrer um acidente, o depreciado roteirista ganha uma chance nas mãos do prodígio da vez, um tal de Orson Welles (Tom Burke). A ideia era que ele produzisse uma peça de ficção inspirada na trajetória do milionário William Randolf Wearst (Charles Dance, magnífico). Um homem inacessível que, numa daquelas obras do destino, Mankiewicz pôde conhecer e desenvolver uma frágil relação de amizade. O elemento metalinguístico, tal qual em Cidadão Kane, norteia a trama. Enquanto no hit de 1941 nós mergulhamos na intimidade de Charles Foster Kane a partir da perspectiva de um jornalista disposto a retratá-lo sob um novo prisma, em Mank são as memórias do próprio escritor que nos guiam pelos bastidores de uma produção mais pessoal do que poderíamos suspeitar. É aqui, na verdade, que o original Netflix se desconecta do passado. David Fincher também entende que Cidadão Kane não existiria sem Mank (o roteirista). No momento em que olha para a jornada do protagonista diante da realização que viria a definir a sua carreira, o diretor comove ao notar a vulnerabilidade do artista perante um meio tão corrosivo. 

A partir do inquieto vai e vem temporal proposto pelo script (a afiada montagem contorna o didatismo ao regular o ritmo da trama), o diretor é cuidadoso ao, em primeiro lugar, investigar as raízes da desordem de Herman Mankiewicz. Sem um pingo de condescendência, o roteiro nota os vícios e as virtudes dele. A indolência de quem sabe que é bom contrasta com a impotência de quem sabe que nunca será valorizado. Se Charles Foster Kane se escondia na sua “grandeza”, Mank se destacava com a sua “pequenez”. A sua mentalidade ferina, combinada com o senso de humor sarcástico e inconsequente, era atraente aos poderosos. Ele não tinha muito a perder. A sua personalidade (não o seu trabalho) o colocou na alta roda. O aproximou de líderes. Com um olhar atento para as sequelas deste processo, David Fincher é categórico ao não só expor a real posição dele, mas principalmente ao traduzir o efeito desta perigosa relação na identidade do protagonista. Mank inquieta verdadeiramente quando enxerga a verdade deste artista. Quando escancara o desdém da indústria para àqueles que desafiam o ‘status quo’, o estrago causado pela decadência, os interesses escusos daqueles que “comandavam” o show. 

À medida que o roteiro de Cidadão Kane vai sendo escrito, nós somos convidados a invadir a psique do autor desta obra. Conhecemos a ideologia escondida na irreverência. A frustração refletida no alcoolismo. A genialidade maquiada pelo descompromisso. A lealdade ofuscada pela acidez. Uma combinação de pecados e virtudes absorvidas com maturidade por Gary Oldman. Um ator no controle da persona do seu personagem. Impressiona como ele ajuda a reescrever a história do seu Mank com uma performance positivamente vulnerável e tridimensional. Por mais que o olhar idealizado do texto seja evidente (talvez o maior dos pecados da produção), Oldman é astuto ao exaltar a face humana de Herman. O comedimento e a ironia dialogam com o ar melancólico que o cerca. Sem querer revelar muito, a sequência do jantar, em que o roteirista cospe verdades inebriado pela bebida e pela amargura, é daquelas que só um ator no auge da experiência é capaz de atingir. Um predicado, de fato, valorizado pela visão intimista “ostentadora” proposta por David Fincher. Independentemente da opulência do cenário em questão, o trabalho de reconstrução de época é um espetáculo à parte, o cineasta torna tudo mais real com os seus elegantes planos fechados e os fluídos planos longos. Todas as cenas envolvendo Mank e a atriz Marion Davis revigoram graças a espontaneidade com que o Fincher constrói esta amizade. 

O elenco, em especial Gary Oldman, a carismática Lily Collins e a radiante Amanda Seyfried, ganha liberdade para brilhar. E isso, é bom frisar, sem limitar o potencial imagético da obra. As referências visuais (diretas e indiretas) a Cidadão Kane, por sinal, são um deleite para os fãs de cinema. É impossível não associar, por exemplo, a cena em que Herman deixa a garrafa de bebida cair com a icônica sequência em que Kane larga o globo de neve após morrer. Fincher ressignifica a homenagem. O que é trágico lá, é irônico aqui. Sempre que reverência o clássico, o realizador o faz para engrandecer o seu personagem e a sua criação. Nunca para diminuir a figura de Orson Welles. Como disse na abertura do texto, aliás, Mank é também um grito de resistência do cinema enquanto arte política. Sob o incomodado olhar de Herman Mankiewicz, o longa é implacável ao se insurgir contra a farsa da Hollywood romântica. Com a mesma ferocidade com que Welles atacou os setores de comunicação em Cidadão Kane, Fincher se volta contra o seu próprio meio a fim de separar a realidade do artista da dos executivos. Alimentado pela energia indômita do protagonista, Mank (o filme) é inclemente ao atacar a insensibilidade daqueles que operavam as engrenagens. O cineasta usa o deboche para escancarar uma rotina que insiste em não mudar. 

O tratamento quase caricatural ao retratar figuras como Louis B. Meyer e Irvin Thalberg sugere a discordância de uma voz cansada de ser “limitada” por uma mentalidade arcaica. Indica também o pragmatismo de homens dispostos a tudo para usar “a magia do cinema” em seu próprio benefício. O contexto, o período pós-grande depressão, dialoga involuntariamente com o momento em que estamos vivendo. Uma fase tenebrosa para o meio cinematográfico. Em que, tal qual no passado, os executivos se voltam para a classe artística com propostas um tanto duvidosas. A maneira com que Fincher filma o dissimulado pedido de ajuda de Meyer é genial. O diretor, fiel ao imaginário de Cidadão Kane, usa o plongée e o contra-plongée a fim de estabelecer a real posição do executivo perante àqueles que fazem o cinema acontecer. Uma mensagem que soa mais enfática no momento em que paramos para pensar que essa é uma produção da Netflix e não dos grandes estúdios aqui retratados. Mank, ao fim, usa o passado para atacar a velha Hollywood que permanece. E isso sob a perspectiva de um realizador que, cansado de ser o “macaco tocar de sanfona dos poderosos”, resolveu revelar a sua grandeza ao defender a força questionadora do Cinema numa obra inigualável. Uma rosebud que não se perdeu nas memórias da amargura. 

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