terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Crítica | Soul

As lições que tiramos do fim

Escrever um texto racional sobre Soul é algo praticamente impossível. É o tipo de obra que transcende a análise fílmica. Uma revigorante dose de vida num momento em que somos tomados pela incerteza e pela desesperança. O mundo precisava de um filme como esse em 2020. Nós, na verdade, sempre precisamos de produções como essas. Profundas o bastante para nos fazer refletir. Densas o bastante para nos colocar em dúvidas sobre as nossas reais prioridades. Imaginativas o bastante para nos reconectar com o eu infantil muitas vezes soterrado pelas preocupações, pelos medos e pelas imposições da vida adulta. Após tratar a nossa finitude com parte da “aventura” em Up (2009) e enxergar a angústia emocional causada pelo recomeço em Divertida Mente (2015), o genial (à essa altura ele já merece esse adjetivo) diretor Pete Docter leva a discussão existencial para um novo patamar ao discutir o nosso propósito enquanto ser vivo. Para isso, o cineasta foge do lugar comum dentro do Universo Pixar ao focar na desordem de um homem de meia-idade. 

O protagonista, aqui, não tem a experiência do ranzinza senhor Friedricksen, nem tão pouco a imaturidade sentimental da pré-adolescente Riley. Joe (voz de Jamie Foxx) é um músico com dúvidas. Um pianista talentoso indeciso sobre o caminho a seguir. É impossível não se reconhecer nele. Quantas vezes já não ficamos na posição de Joe? Divididos entre o sonho e a realidade. Quantas vezes não vimos isso se tornar um problema? Os seus medos são reais. Arriscar o emprego de professor em troca de uma oportunidade de tocar para uma importante cantora é o tipo de risco que muitas vezes cruza o nosso caminho. Joe achava que sabia o que queria. Joe sequer desconfiava daquilo que verdadeiramente o esperava. Não existe espaço para a autoajuda em Soul. Nem tão pouco para respostas reducionistas. Muito menos para o sentimentalismo barato. O roteiro assinado pelo próprio Pete Docter, ao lado de Mike Jones e do co-diretor Kemp Powers, fascina ao apenas sugerir perguntas que facilitem o nosso processo de compreensão do que vemos em tela. Uma (auto)análise que, como disse na abertura deste texto, transcende a obra em si. A repentina morte de Joe expande a reflexão. Justamente no dia em que ele teria a chance da sua carreira, o fim surge como um pesado golpe do destino. O adeus a vida na Terra marca o começo da aventura mais provocante da Pixar. O primeiro filme do estúdio em que os adultos são realmente o público alvo. 

Por mais que o elemento lúdico na riquíssima construção de mundo salte aos olhos, Pete Docter não perde a oportunidade de usar a imaginação para colocar em cheque as convicções do público. À medida que Joe tenta desesperadamente retornar ao seu corpo, o cineasta é categórico ao mergulhar nas certezas de um homem tão errático. Tudo para discutir a nossa limitante relação com a vida. Com muito dinamismo e pouco didatismo, o realizador transita por temas e conceitos profundos com uma leveza revigorante. Um segundo de desatenção e a mensagem pode ficar comprometida. Tudo no plano espectral sugere alguma coisa. Na ânsia de fugir do além-vida, Joe decide se abrigar no pré-vida. Num lugar em que as “pequenas” almas são preparadas para a vida na Terra. Lá ele fica com a missão de se tornar o tutor da anárquica 22 (voz de Tina Fey), uma alma que reluta em enxergar o propósito da encarnação. Repare como até a personagem “infantil” traz consigo uma aura experiente. Ela já estava há tempo demais naquele lugar. Nem a grandeza de alguns dos seus mentores foi capaz de inspirá-la. Com uma verve anti-determinista, o cineasta é cuidadoso ao, a partir da troca de experiências entre Joe e 22, expor os obstáculos para sugerir os caminhos. 

Numa das passagens mais inquietantes da obra, os protagonistas se deparam com um mundo em que as almas de alguns seres vivos se “perdem”. Obcecados por estímulos mundanos, eles se tornam reféns dos seus pretensos propósitos. Viram monstros sem identidades, fadados a perseguir algo que nunca esteve a seu alcance. Em uma só cena, Pete Doctor escancara a realidade de muitos. Sugere o quão tênue é a linha que separa a inspiração da obsessão. Estuda os males da mente a partir da nossa incessante busca por um propósito. O cineasta é enfático ao atacar o consumismo, o capitalismo selvagem, a ambição desenfreada, a clausura estruturada por um sistema perverso. Não à toa o escritor George Orwell é uma das poucas referências positivas exaltadas pela 22. Em Soul, as respostas não estão necessariamente naquilo que nós queremos, ou sonhamos ter. Esse processo pode ser facilmente corrompido. O próprio Joe tem muito a dizer sobre isso. Em Soul as respostas estão naquilo que não percebemos que precisamos tanto. A desencarnação abre caminho para um estudo do poder do imaterial. Das memórias que construímos. Das experiências que vivemos. Da exaltação dos pequenos momentos que formam o todo. 

Pete Docter, com toda certeza, não imaginava que a sua animação seria lançada num contexto tão triste. O fato dela dialogar tão intensamente com o momento em que vivemos, porém, só reforça a profundidade do texto, a delicadeza com que o cineasta enxerga o fim e a maneira com que ele discute a efemeridade da vida. Tudo isso, é bom frisar, numa produção divertidíssima. O humor de Soul nasce da falsa sensação de controle. Da disfuncional amizade entre um homem disposto a tudo para retornar à vida e uma alma disposta a tudo para se manter no pré-vida. As gags, aqui, são menos físicas e mais textuais. O que dialoga com a vocação adulta da produção. Já aventura ganha corpo graças a perfeita fusão entre o fantástico e o real. A natureza reconhecível do plot turbina a experiência. O caos urbano de Nova Iorque exala disfuncionalidade, neuroses e angústia. Soul preza pela verossimilhança. Um sentimento capturado com maestria pelos solos de Jazz do pianiasta Jon Batiste. Impressiona como Pete Docter desenvolve o senso de urgência da trama sem descaracterizar a essência intimista do longa. O fim tira Joe da inércia. A morte obriga o personagem a forçar uma reflexão tardia. O primeiro personagem negro da Pixar é também um dos mais ricos e profundos. A representatividade, aqui, só ajuda a revigorar a experiência. Um predicado que se reflete na magnífica construção visual da obra. Estamos diante do título mais ousado da Pixar neste aspecto. 

A riqueza de detalhes do ambiente nova-iorquino contrasta brilhantemente com o design minimalista do plano espiritual. É preciso ter muita criatividade para construir um cenário tão peculiar assim. Pete Docter já havia flertado com a desconstrução da animação digital numa sequência em Divertida Mente. Aqui, no entanto, o cineasta expande este conceito ao absorver o elemento etéreo nos seus traços. Enquanto as almas são fofas e cativantes, o cenário em que elas habitam flerta ora com o Sci-Fi ‘hi-tech’, ora com o surrealismo. O quê modernista no design dos Terrys e Jerrys é hipnotizante. O realizador rompe com o imaginário religioso ao se concentrar nas sensações. A paleta de cores em tons de azul, lilás e verde indica paz, serenidade e leveza. Uma aura leve valorizada pela sublime trilha sonora de Trent Raznor e Atticus Ross. O tipo de composição capaz de sublinhar a essência poética da obra. É no elemento dramático, porém, que está o coração de Soul. Consciente da inevitabilidade do tema central, a morte, o realizador emociona ao valorizar a jornada em detrimento do destino. O arco de Joe, infelizmente, dialoga com o de muitos homens e mulheres neste ano de 2020. Quantos não estavam tão perto de realizar o seu sonho e não puderam? Quantos partiram exercendo o seu propósito? Quantos só queriam ter mais uma chance de reencontrar um ente querido? Assim como em Up e Divertida Mente, Pete Docter usa o fim (e a nossa dificuldade em aceitá-lo) para expor o quão difícil pode ser o recomeço. Por trás do sofrimento e da dor, porém, existem as memórias. Ao focar na efemeridade da nossa existência, o diretor exalta o que foi construído. Defende a beleza do que ficou. Indica também o poder transformador das nossas escolhas. Soul surge para iluminar. Soul é esperança. Soul é música. Soul é vida. 


Esse texto eu dedico para todas as vítimas da COVID-19 no Brasil. Um filme como o poder de ajudar muitos dos que ficaram.

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