segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Crítica | Alguém Avisa?

O pesadelo da família conservadora

Troque o racismo pelo conservadorismo e você verá que Alguém Avisa? é uma espécie de Corra! versão 'family friend'. A atriz e diretora Clea DuVall é sagaz ao usar o filtro natalino para expor a toxicidade no seio familiar e o estrago causado por exigências realmente perversas. É interessante ver como o filme foge do adocicado lugar comum ao se sustentar no humor de desconforto e a partir dele arquitetar o drama das suas reprimidas protagonistas. No papel está tudo lá. O clima festivo. As decorações. A reunião familiar. Um cenário reconhecível explorado sob uma amarga nova perspectiva. DuVall é inteligente ao subverter discretamente as convenções do gênero. Ao trazer a realidade para o centro da trama. O contexto não poderia ser mais atual. Num momento em que perigosos discursos retrógrados são normatizados, a cineasta é enfática ao apontar o dedo para os vícios de mentalidade conservadora. O deboche, porém, não é sua arma preferida. Ela parece entender que a ridicularização não é o melhor caminho para tratar o tema. Uma abordagem sóbria que dialoga com o melodrama familiar proposto pelo texto. 

Em Alguém Avisa? a volta para casa é um problema. Convidada para passar o Natal com a família da sua querida namorada, Abby (Kristen Stewart) é pega de surpresa quando descobre que Harper (Mackenzie Davis) não havia se assumido para os pais. Uma situação naturalmente desconfortável que só piora no momento em que ela descobre as aspirações políticas do patriarca (Victor Garber), um vereador republicano disposto a concorrer à prefeitura da sua cidade. O elemento político - claro! - só apimenta os conflitos das personagens. O roteiro assinado pela própria Clea DuVall é cuidadoso notar o preconceito silencioso embutido no discurso. Ela não se sente obrigada a criar vilões. Ted, por exemplo, está muito mais focado na campanha do que nas escolhas das filhas. Tipper (Mary Steenburgen), a matriarca, só quer passar a melhor impressão aos olhos dos possíveis eleitores. Eles não precisam ser homofóbicos para soarem homofóbicos. As “exigências” daquele mundo eram nocivas às duas. Abby e principalmente Harper sabiam disso. O que torna esta volta ao “armário” ainda mais desconfortável. Uma sensação latente arquitetada com brilhantismo ao longo da envolvente trama. 

O cenário natalino, gradativamente, é tomado pela falta de diálogo e pelo distanciamento. Enquanto Abby se sente deslocada aos olhos desta família “perfeita”, Harper só tentava voltar a pertencer aquele mundo. Uma barreira invisível que catalisa o elemento dramático escondido na comédia. Mais do que questionar as ações das personagens, Clea DuVall usa o esforço de Harper e o impacto causado por este processo para estudar o peso da repressão na identidade de um indivíduo gay. Os atos da filha preferida dizem mais sobre os medos dela do que propriamente sobre o ambiente repressor que a cerca. A cineasta usa a crescente falta de sintonia entre as duas para identificar as feridas íntimas que custam a ser cicatrizadas. Uma das personagens mais interessantes da película, a ex-namorada vivida pela sempre carismática Aubrey Plaza revela um outro lado da situação. Expõe a linha tênue que separa a autoproteção da autopreservação. Na ânsia de vestir uma roupa que não era mais a sua, Harper involuntariamente magoa, isola e machuca. O medo é o agente catalisador da história. De volta a analogia que abre este texto, é impossível não traçar um paralelo entre Chris (Daniel Kaluuya) e Abby. Ambos são vítimas de uma estrutura perversa. Ambos perdem o controle da situação. Ambos demoram a perceber a realidade que relutam a aceitar. Ambos querem fugir daquela realidade, mas não sabem como. 

Ao se concentrar na escanteada namorada, a cineasta é perspicaz ao, tal qual Jordan Peele, focar nas reações daquela família, se espantar com o vazio que os unia, enxergar o empenho de cada um deles em viver quase um personagem. O humor de desconforto nos faz entender a angústia da protagonista. Uma mulher obrigada a abrir mão da sua identidade contra a sua vontade. O terror presente em Corra!, aqui, dá lugar a gags muitas vezes motivadas por sentimentos tóxicos. Existe bullying naquele lar. Existem julgamentos silenciosos. Existe uma felicidade ‘fake’ naturalmente aflitiva. Mais do que uma personagem engraçadíssima, a hiperativa Jane (Mary Holland) tem muito a dizer sobre o sabor da liberdade naquele cenário. Em Alguém Avisa? o elemento LGBT está longe de ser o único elefante na sala. Ao humanizar as figuras paternas, Clea DuVall nos mantém sempre em dúvida sobre os segredos envolvendo aquela estrutura familiar. O que explica o conflito entre Harper e a sua competitiva irmã Sloane (Alisson Brie)? O que explica a sisudez impressa nas feições dos sobrinhos da protagonista? O que explica a clara seletividade dos pais nas relações com as filhas? A realizadora estrutura estes implícitos conflitos a fim de criar uma bola de neve imparável. O resultado de uma sucessão de mentiras, opções e omissões perfeitamente identificáveis. 

O melhor desta singular comédia, na verdade, está na capacidade dela ressignificar o conceito de união natalina. A desordem é o que verdadeiramente os aproxima. Todos ali são vítimas das suas escolhas. Ainda que falte pulso (ou talvez tempo) a Clea DuVall para mergulhar com a profundidade necessária na psique dos cativantes personagens de apoio, ela compensa ao extrair a energia cômica\dramática da disfuncionalidade familiar. Graças a delicada construção narrativa, o roteiro torna o processo de desconstrução individual aceitável. O texto, mesmo em sua face mais irônica, respeita os sentimentos dos personagens. A comédia, o melodrama e o romance andam de mãos dadas aqui. O que, de certa forma, explica as consistentes atuações de todo o elenco, em especial do “casal” Kristen Stewart e Mackenzie Davis. Por mais que a química entre as duas atrizes não seja tão marcante assim (o que reflete a veia familiar do longa), elas esbanjam versatilidade ao absorver o turbilhão de emoções que a cercavam. O dinâmico texto de Clea DuVall cresce devido à verdade impressa em tela. Nós sentimos por elas. Nós torcemos por elas. Nós reconhecemos a realidade de muitos através delas. 

Embora derrape ora e vez nos problemas de acabamento, a montagem, em especial, abrevia\acelera algumas sequências com certo descuido, Alguém Avisa? é mordaz ao testar os limites dos filmes natalinos com a intenção de revelar o estrago causado por enraizadas imposições familiares\sociais. A felicidade muitas vezes pré-fabricada pelo gênero é contestada numa comédia agridoce sobre o poder libertador da afirmação diante de toda e qualquer forma de repressão.

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