Uma dor que não pode ser silenciada
Disposta a interromper a gravidez, Autumn, como muitas, se vê sozinha. Os enquadramentos fechados de Hittman traduzem o desconforto, a angústia e as incertezas com rara sutileza. Ela evita ao máximo interferir dramaticamente no arco da sua protagonista. Evita ao máximo criar dispersões narrativas. Não espere diálogos profundo e\ou existenciais. O sofrimento, aqui, é interiorizado. É reprimido. Autumn reage mais do que age durante o percurso. E as suas discretas reações dizem tudo. Eliza Hittman é cuidadosa ao moldar o seu estudo de personagem a partir dos detalhes. Dos pequenos gestos. O seu texto não precisa literalizar ou verbalizar para emocionar. Nem tão pouco para elucidar. Estamos diante de uma obra autoexplicativa. As imagens revelam tudo o que as palavras não seriam capazes de expor naquele momento. O que fica bem claro, em especial, na relação entre Autumn e a sua compreensiva prima Skylar (Talia Ryder). Hittman em momento algum se sente obrigado escrever diálogos que não estariam na boca dessas jovens de 17 anos. O turbilhão de sentimentos é o bastante para ela estudar o reconfortante elo que as unia. Expressões como “me ajuda” ou “desculpa” são irrelevantes diante do grau de conexão entre as duas. Não existe espaço para “mas” aqui. Só o fato delas enfrentarem juntas uma grande cidade em busca da solução para algo tão complexo é o suficiente para entendermos aquilo que as unia.
Um misto de sororidade, empatia e cumplicidade que cresce à medida que notamos a fragilidade destas jovens diante de um meio hostil. Através da perspectiva precoce das protagonistas, Eliza Hittman é implacável ao repercutir as sequelas geradas pela superexposição feminina num meio machista. Embora flerte com o maniqueísmo na representação individual do masculino, a cineasta compensa quando usa o cenário, uma insensível Nova Iorque, com um reflexo da opressão experimentada pelas adolescentes até então. Não bastasse a gravidez e a insegurança quanto o aborto, Autumn é obrigada a enfrentar a burocracia, o julgamento silencioso, o desamparo e os perigos inerentes ao nosso estilo de vida urbano. O que só torna a experiência mais traumática para a personagem e impactante para o público. Uma combinação que justifica o ar lacônico\introspectivo da protagonista. São nos momentos em que Autumn se vê obrigada a falar, no entanto, que Nunca, Raramente, Ás Vezes, Sempre desconcerta. A realidade de muitas jovens\mulheres é exposta numa sequência monumental e ao mesmo tempo devastadora. Tudo o que até então estava subentendido é parcialmente exposto numa cena íntima em sua essência, delicada em sua construção, mas protocolar em sua abordagem. Tão fria quanto a maneira com que Eliza Hittman traduz as etapas de um aborto. Quantas mulheres não tiveram que passar pelo mesmo questionário¿ Quantas mulheres nunca tiveram voz para respondê-lo?
Com a sua câmera focada no rosto da protagonista por dez longos minutos, a cineasta é enfática ao colocar o dedo na verdadeira ferida. Na violência do dia a dia, no abandono, no abuso, na disfuncionalidade familiar. As respostas dadas por Autumn e principalmente as não conseguidas escancaram uma rotina reconhecível. As respostas dadas por Autumn ajudam a revelar uma grande atriz em potencial. O que Sidney Flanigan faz aqui (e ao longo de todo o filme) é digno de aplausos. Ela se despe de qualquer afetação ao mergulhar na psique da sua personagem. Ao capturar o medo que se confunde com ansiedade. A convicção que se confunde pressa. A incerteza que se confunde com segurança. Em seu primeiro trabalho na carreira, Flanigan endossa a estética documental proposta por Hittman com um comedimento fascinante. Um elogio que deve se estender a magnética Talia Ryder. Tal qual sua companheira de cena, ela reage aos estímulos que catalisam a trama com extrema naturalidade. A angústia no olhar dela é sincera. O cuidado em não interferir demais idem. Sem querer revelar muito, a cena em que as duas se reconectam após uma breve discussão é de uma sensibilidade indescritível. São duas jovens, agindo como jovens e se entendendo como jovens.
Neste aspecto, é impossível não traçar um paralelo com outro representante do cinema ‘indie’ verdade norte-americano: o excelente Oitava Série. Embora em contextos totalmente distintos, os dois longas dialogam em sua construção estética e na maneira com que usam o viés documental para renegar convenções\clichês. Com a sua câmera muitas vezes na mão e um ‘mise en scene’ pensado para deixar as imagens falarem por si só, Eliza Hittman eleva a carga dramática do longa ao nunca (de forma alguma) quebrar a abordagem naturalista. Ela devota tudo a jornada. Ela propõe reflexões\questionamentos profundos a partir dela. E isso sem empalidecer o vigor estético da fotografia em tons frios, geralmente azulados e luminosos de Hélène Louvart (do brasileiro A Vida Invisível). Um trabalho que valoriza o filtro da realidade proposto pela película. Em Nunca, Raramente, Ás Vezes, Sempre, o tabu do aborto fica em terceiro plano devido a ferocidade com que a cineasta se insurge contra o pesado círculo vicioso que costuma levar a ele. Nas entrelinhas, Hittman sugere que não existe espaço para julgamentos morais num mundo em que as mulheres são cerceadas de direitos tão básicos. Num mundo em que os homens não assumem as suas responsabilidades. Num mundo em que o sempre é mais ouvido que o nunca.
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