As raízes de uma obra
Estamos diante de uma obra com raízes raciais profundas. Um complexo processo de germinação esmiuçado com poder de síntese ao longo da fascinante (e envolvente) experiência audiovisual. Não existe espaço para o lugar comum em AmarElo. Mais do que uma ode à música de Emicida, o doc exalta as referências do artista, a bagagem cultural impregnada na jornada de um homem que fez da sua arte uma resposta a injustiça. Num recorte histórico impressionante (dividido em fluídos três atos associados ao processo de plantação), o afiado roteiro assinado por Toni C é sagaz ao estruturar a trama a fim de revelar o produto final de uma jornada secular. Inquietude e negritude se confundem numa explosão de reverências que vão além das referências. Nada é protocolar em AmarElo. Nada é fake. Em cada um dos enérgicos 95 minutos de projeção (eu assistiria mais 95) está a base que sustenta a verdade do artista. A partir de inserções gráficas expressivas, das preciosas imagens de arquivos e do vibrante trabalho dos animadores, o documentário celebra o vanguardismo da música preta, exalta a coragem dos ativistas negros, resgata os feitos de homens e mulheres que ajudaram a escrever AmarElo. Direta e indiretamente.
Emicida se assume como um dos produtos de uma safra semeada por icônicas mãos pretas. Não por pretensiosismo, ou por vaidade, mas por responsabilidade. O foco está menos na obra criada por ele e mais nos feitos daqueles que desafiaram o racismo enraizado pelo direito de ter a sua voz ouvida. Para entender o presente (a criação do artista), o doc se volta para o passado (a base do artista). As referências não poderiam ser mais expressivas. De músicos como Wilson das Neves e Mestre Marçal, a cantores como Candeia e Wilson Simonal. De artistas como Ruth de Souza e Mussum, a ativistas como Lélia Gonzalez e Luis Gama. Temos Samba e Rap. Modernismo e realismo. Poesia e Cinema. AmarElo destaca os direitos conquistados na base do ímpeto. Destaca também as inúmeras batalhas enfrentadas pelo caminho. Na passagem mais emocionante da obra, quatro ativistas se erguem na plateia para serem ovacionados. Eles são os últimos sobreviventes de um movimento de união racial no auge da ditadura militar no Brasil.
O orgulho nas feições deles dialoga com a verdade das canções de Emicida. É a fusão do passado e do presente que alimenta AmarElo - É Tudo Para Ontem. Embora perca um pouco da lucidez narrativa nos minutos finais (o paralelo traçado entre a Gripe Espanhola e a pandemia da COVID-19 não foi dos mais inspirados), Fred Ouro Preto usa as penetrantes composições de Emicida como ponte para um estudo de algo muito maior. Os gritos\sons\acordes\palavras de homens e mulheres negras convergem numa experiência audiovisual profunda em sua abordagem, íntima em sua realização e fascinante em sua construção.
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