segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Crítica | Rosa e Momo

Uma realidade envelhecida


Um dos mais influentes movimentos de vanguarda cinematográfico, o Neorrealismo Italiano ajudou a levar o drama das ruas da Europa dos anos 1940 para a tela grande. Com uma abordagem focada no elemento humano, esta corrente entendeu o poder da Sétima Arte enquanto instrumento de denúncia. Usou o micro para desnudar o macro. Deu voz aos mais vulneráveis para atacar os repressores, para escancarar as sequelas geradas por um sistema cruel e desigual. Não à toa o protagonismo infantil era tão importante. A realidade, aos olhos de uma criança, ganha um contexto mais trágico. Títulos como O Ladrão de Bicicletas (1948), Alemanha, Ano Zero (1948), Roma, Cidade Aberta (1945) e Vítimas da Tormenta (1946) não me deixam mentir. Um pacote de grandes clássicos do cinema que, mais de meio século depois, seguem servindo como inspiração para longas como Indomável Sonhadora, Cafarnaum, Assunto de Família e o recente Rosa e Momo. É impossível colocar a mais nova produção original Netflix no mesmo patamar de qualidade das obras citadas acima. Um claro exagero da minha parte. Ainda assim, é impossível não reconhecer o viés neorrealista no tocante drama italiano dirigido por Edoardo Ponti. 

Embora refém de algumas convenções das populares dramédias, o longa comove ao nunca tirar proveito da estética da miséria para arrancar lágrimas fáceis. O mundo mudou. Rosa e Momo não é mais um filme sobre vítimas, mas sobre sobreviventes. Sem um pingo de maniqueísmo, o cineasta é cuidadoso ao enxergar a dignidade dos esquecidos. Enquanto foca na natureza resiliente dos seus personagens, o argumento assinado Ugo Chiti (dos elogiados Gomorra e Dogman) renega os clichês do segmento ao ouvir o grito de basta deles na figura da maternal ex-prostituta Rosa (Sophia Loren) e do autoconfiante aspirante à delinquente Momo (Ibrahima Gueye). O acaso os aproxima. As feridas do passado os une. Das suas respectivas formas, Rosa e Momo encaravam de peito aberto este sistema injusto. Não existe espaço para a condescendência aqui. Filho de Loren, Edoardo Ponti é contundente ao traduzir a dor causada por velhas feridas, a angústia ocasionada por sentimentos contrastantes, a tristeza gerada pelos fantasmas do passado. É interessante ver como o roteiro, através da conflituosa relação entre os protagonistas, nota o processo de estigmatização enraizado numa sociedade desigual. Sozinhos, os personagens não conseguiriam desafiar as regras impostas. 

Enquanto Momo enxerga no tráfico de drogas uma alternativa, Rosa se vê cada vez mais mergulhada nas suas dilacerantes memórias. Esse era o destino dos dois. O dela a solidão, o dele a violência urbana. Era isso que o mundo esperava deles. Um círculo vicioso impiedoso que, aqui, é quebrado pelo companheirismo. Ponti esbanja sensibilidade ao trabalhar o laço de empatia dentro de uma comunidade criada em torno do abandono. Para onde olha Momo se reconhece. Na inocência entristecida do seu parceiro de quarto, na solidão do comerciante muçulmano, na fragilidade da sua nova tutora. O drama destes imigrantes numa Europa pretensamente miscigenada catalisa a jornada dos personagens. Por trás da persona gangsta existe uma criança. Por trás da (ainda fina) casca criada por ele existe alguém com medo. Um menino africano sem raízes incapaz de lidar com as suas próprias frustrações. Enquanto a veterana Sophia Loren - do alto dos seus 86 anos - traz um revigorante senso de nobreza maternal para a sua Rosa, o intenso Ibrahima Gueve comove ao acessar as emoções do seu Momo sempre com muito comedimento. Esse, aliás, talvez seja o grande predicado do longa. 

Ponti não se rende aos excessos dramáticos. Ele troca a explosão lacrimosa pelo silêncio. Troca a exposição pela introspecção. Nas passagens mais intimistas, Rosa e Momo causa uma emoção natural. O que, paradoxalmente, contrasta com a previsível estrutura narrativa proposta. No momento em que quebra a abordagem naturalista, a produção Netflix se torna um filme comum. Bem-intencionado, funcional, mas aquém do seu claro potencial. O roteiro peca pela superficialidade ao estudar as sequelas causadas por tudo o que os protagonistas perderam pelo caminho. O que explica, por exemplo, a relação do garoto com uma leoa imaginária? Embora o animal cause um impacto visual\narrativo indiscutível, este elemento lúdico se justifica basicamente num estereótipo africano. Era preciso ir além da sugestão. 

O cineasta derrapa ao nunca colocar o dedo nas feridas pessoais dos protagonistas. Talvez na ânsia de tornar a experiência mais palatável, Edoardo Ponti se vê obrigado a filtrar demais a realidade. Subestima as tragédias do nosso dia a dia. Enverniza a trama com uma fotografia luminosa típica das dramédias. O otimismo, vez ou outra, se confunde com o escapismo. O que limita o impacto da experiência. No fim, porém, a tocante verve social atenua os equívocos. Rosa e Momo passa longe de ter o ímpeto dos principais clássicos do neorrealismo italiano, mas, sete décadas depois, se alimenta a energia crítica deles para denunciar uma realidade que insiste em não ser combatida.

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