O passado nunca foi tão presente
Tanto a escrava Eden, quanto a ativista Verônica lutam por liberdade. A primeira no sentido literal da palavra. A segunda no sentido social. Enquanto a subjugada Eden espera uma chance para agir, a empoderada Verônica não perde uma oportunidade para defender a ação. Separadas por um século e algumas décadas, as duas são obrigadas a enfrentar um ‘status quo’ racista que segue matando, oprimindo e segregando. É interessante ver como, no tempo presente, o roteiro não se sente obrigado a esmiuçar os problemas de hoje. Nem o mais estúpido dos negacionistas é capaz de negar o estrago causado pela violência policial, por uma política pública desigual e por um presidente com falas altamente polêmicas. Todo mundo sabe como funciona a mentalidade dos algozes. Todo mundo sabe também qual é a realidade que Verônica combate com tanto afinco nos seus discursos. Em um dia ela enfrenta a condescendência, uma série de olhares penetrantes, a hipocrisia e principalmente o desconforto. Sua presença black orgulhosa num ambiente de luxo gera situações embaraçosas. Quem sou eu para dizer que o paralelo traçado é exagerado quando os fatos não deixam os cineastas mentirem? Esse é o preconceito “moderno”. Esse é o reflexo de um período tenebroso que não ficou impresso somente nos livros de história.
Consciente disso, o longa acerta ao mirar também num passado que não pode ser esquecido. A partir da luminosa fotografia texturizada do uruguaio Pedro Luque, os realizadores impactam ao traduzir a dor, o desespero e a impotência. O uso da expressiva câmera lenta, combinado com os invasivos planos fechados, cria cenas genuinamente trágicas. Direto e inclemente enquanto drama, Antebellum cresce enquanto crítica social no momento em que se volta para o cinema de Horror. Inspirado por um certo filme de M. Night Shyamalan e por Corra!, Gerard Bush e Christopher Renz puxam o tapete do espectador ao nos presentear com uma reviravolta difícil de ser antecipada. Aqui o longa sobe de patamar. Mais do que um instrumento de tensão, o ‘plot twist’ catalisa a jornada da protagonista. Solidifica o elo entre o público e a personagem. As nítidas conveniências narrativas se tornam irrelevantes diante da revigorante falta de sutileza com que os diretores atacam o racismo. Uma abordagem justificável. Guiado pela magnífica Janelle Monáe, impecável ao traduzir a aflição silenciosa (e silenciada) das suas personagens, o thriller dilui a barreira temporal à medida escancara a vulnerabilidade destas mulheres negras num ambiente racista. O terror, seja em sua face mais gráfica, seja na mais sugestiva, é ininterrupto. A intenção não é simplesmente notar certas semelhanças entre dois períodos distintos. O que, de fato, seria um tanto tolo.
Em Antebellum (antes da guerra na tradução do latim), as devastadoras marcas deixadas na pele dos afro americanos escravizados seguem causando dor. Os gritos do passado ecoam no presente tanto na identidade das novas vítimas, quanto no discurso dos novos algozes. Gerard Bush e Christopher Renz, neste contexto, tratam a raiva como uma resposta ao ódio. Uma resposta a guerra que nunca termina. O que fica evidente, em especial, na imagética (eu diria arrepiante) sequência final. O passado, encenado ou não, segue muito vivo. Antebellum, em suma, defende que o passado precisa ser combatido no presente e - se preciso - no futuro.
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