quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Crítica | The 40 Years Old Version

Representatividade importa

O que significa a representatividade para você? Luta por espaço? Por mais oportunidades? Por igualdade? Por reconhecimento? Eis uma palavra muito falada, mas pouco discutida nos últimos anos dentro do showbiz. Eu não posso sequer sonhar em responder essa pergunta. Nem o mais empático dos indivíduos é capaz de se colocar na pele daqueles que foram esquecidos e\ou depreciados por anos na mídia. Daqueles que, para triunfar nas suas respectivas carreiras artísticas, se acostumaram a abrir mão. A vestir a roupa que se adequava no momento. É duro perceber que, em pleno 2020, um filme como The 40 Years Old Version seja tão urgente. Um estudo sobre o que verdadeiramente representa a representatividade, o longa escrito, dirigido e atuado por Radha Blank soa como o grito de uma artista cansada de ser podada. O tipo de obra em que realidade e ficção se fundem numa explosão de intimidade e honestidade. 

Como os recentes Green Book e Histórias Cruzadas mostraram, um filme com atores negros não é necessariamente representativo. Principalmente quando estes seguem os padrões e as exigências de um meio comandado por homens brancos. Em The Forty-Year-Old Version, Radha Blank coloca o dedo nesta enraizada ferida ao levar uma realidade reconhecível para a tela. Prestes a completar 40 anos, Radha vivia dos louros do passado. Dramaturga, ela, antes dos 30 anos, conseguiu emplacar uma bem-sucedida peça na Broadway. Algo bem raro para uma mulher negra. Sua presença “exótica” atraiu os holofotes durante algum tempo. Mas só durante algum tempo. O passado esperançoso se transformou num presente frustrante. Sem oportunidades, ela se viu obrigada a dar aulas e tentar algo novo. O Hip-Hop surge como uma alternativa. A idade surge como um obstáculo. As imposições do “embranquecido” meio teatral surgem como um desnorteante choque de realidade. 

Impulsionado pelo texto irônico e afiadíssimo de Blank, The Forty-Years-Old Version transita entre o macro e o micro com desenvoltura. Impressiona a volúpia com que a cineasta se volta contra os vícios do seu próprio meio. Com um claro teor documental, ela é categórica ao notar a falácia do discurso representativo. Quando a oportunidade surge para Radha, ela vem acompanhada de exigências, de filtros, de sacrifícios. A farsa da representatividade fabricada cai por terra à medida que vemos uma artista negra ter que mutilar a sua própria obra para se sustentar. O afetado produtor, obviamente branco, quer parecer livre de preconceitos, mas se recusa a abrir mão das suas estigmatizadas convicções. Ele tem muito a dizer sobre a indústria do entretenimento atual. Aos olhos dela, o oportunismo se revela tão nocivo quanto o próprio racismo. Radha não quer ser um bibelô exótico nas mãos de executivos dispostos a pregar um falso discurso de integração. Ela também não quer ser a estranha no ninho obrigada a viver de migalhas para fazer a sua arte. Radha quer ser ouvida. Ela quer recuperar a sua voz. 

No momento em que se volta a intimidade da protagonista, The Forty-Year-Old Version explode em dramaticidade. Através dela vemos a verdade de muitas. Radha Blank, enquanto roteirista, é sagaz ao investigar o impacto causado pelo “embranquecimento” involuntário da protagonista. Para viver o seu sonho, a escritora cedeu ao mundo que não era seu. Se distanciou das suas raízes. Perdeu a sua própria voz. Tudo para ser “abandonada” em pouco tempo. Radha Blank, enquanto diretora, é cuidadosa ao nunca reduzir tudo a decadência artística. Estamos diante de uma mulher com problemas reais. Do sobrepeso à solidão. Da frustração profissional ao luto. A morte da mãe, uma artista que, apesar de toda sua dedicação, nunca emplacou profissionalmente, surge como uma sombra. A inspiração que acua. Seria Radha mais uma vítima de um sistema cruel? Seria ela capaz de, pela sua mãe e por tantas outras, desafiar este círculo vicioso? O argumento torna tudo mais complexo ao, sempre com uma pitada de sarcasmo (vide os espirituosos comentários dos seus impagáveis vizinhos), usar as pressões externas para refletir os conflitos internos. No coração do texto está uma jornada de reconexão com as suas referências. 

O clichê do hip-hop como um símbolo de ascensão para os afro americanos surge como a porta de entrada para algo muito maior. Um estudo sobre o valor do que foi construído. Para que Radha estivesse ali, outras mulheres sofreram e sucumbiram as imposições. A mãe morta tem muito a dizer sobre o presente da personagem. A vizinha faladeira idem. O jovem DJ vivido por Oswin Benjamin ajuda a mostrar o outro lado. De uma nova geração que resiste, combate e se impõe. Da troca de experiência entre os dois nascem os diálogos mais comoventes do longa. Um senso de verdade sublinhado pela elegante condução intimista de Radha Blank. Com uma fotografia em preto e branco de encher os olhos, a cineasta usa os contrastes visuais para espelhar os dois lados de uma mesma mulher. As múltiplas facetas de uma artista que, prestes a completar 40 anos, descobre que é preciso se libertar para crescer. O produto final de uma jornada cansativa, The Forty-Year-Old Version defende que representatividade é sinônimo de voz. O que, na Hollywood pseudo-progressista dos dias de hoje, só é conseguido (ou melhor conquistado) na maioria dos casos com muito esforço e principalmente coragem. Algo que sobra a esta pérola do cinema indie.



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