sexta-feira, 3 de julho de 2020

Crítica | Ninguém Sabe Que Estou Aqui

Voz roubada

Poucas coisas devem ser tão dolorosas para um artista quanto perder o direito sobre a sua arte. Ali está a essência do criador. Ali está o seu coração. Ali está a sua voz. No mundo da música, até bem pouco tempo, era comum ver bandas\astros formados com base na estética. O dom era (e ainda é) engolido pela beleza. Uma farsa que arruinou a vida de muita gente. Alguns nunca se recuperaram. Com base neste tema, Ninguém Sabe Que Estou Aqui envolve ao mostrar o destino daqueles que tiveram a sua voz “roubada” por interesses comerciais. Distribuído pela Netflix, o longa dirigido por Gaspar Antillo renega os clichês das histórias de redenção ao traduzir o dilacerante impacto deste processo na identidade de um artista. 

Estrelado por Jorge Garcia, o popular Hurley da série Lost, o drama chileno acompanha a rotina de Memo, um homem obeso e solitário que, na sua infância, “cedeu” a sua voz para uma popular estrela da música oitentista. O longa é cuidadoso ao, a partir do comportamento antissocial e isolado do protagonista, desvendar os segredos desta complexa figura. Por mais que os flashbacks surjam no formato de memórias, o cineasta foge das exposições narrativas ao alimentar o mistério em torno dos traumas de Memo enquanto mergulha no seu drama. O tipo de obra que protege os segredos contidos da trama sem enfraquecer (ou limitar) o estudo do personagem. Talvez refletindo o amargor do ex-cantor, Nobody Know I’m Here (no original) renega o viés pop. Tudo aqui é muito silencioso, denso e intuitivo. Uma opção por si só corajosa.

A partir da marcante performance de Jorge Garcia, no melhor trabalho da sua carreira desde a série Lost, Gaspar Antillo escancara a dor do personagem através da sua apatia, vulnerabilidade e também dos seus sonhos. Dentro daquele homem amargurado, deslocado no tempo e no espaço, existia ainda um resquício de arte. Algo que trazia esperança, mas também agonia. O cineasta mostra sensibilidade ao olhar para a intimidade de Memo nestes fugazes momentos mais coloridos. Ainda que o segundo ato seja um tanto arrastado e que o roteiro se sustente em soluções previsíveis para catalisar o clímax, o longa compensa ao nunca sacrificar a natureza do personagem. Memo traz nas suas feições apáticas e na introspectiva presença corporal as sequelas deste tipo de cobrança. Algo que só se torna mais trágico quando percebemos que são enraizadas feridas infantis.

Gaspar Antillo é assertivo ao, nas entrelinhas, não só pincelar um comentário crítico sobre o impacto da dinastia da beleza na identidade daqueles que não se adequam aos padrões impostos, como também questionar o estrago causado pelas exigências midiáticas. Memo, aos olhos do diretor, é vítima de uma indústria, vítima de interesses cruéis, vítima da sua própria arte. Um homem que, diante de tudo isso, decidiu dar ao mundo o que ele recebeu: nada. Humano e com desdobramentos instigantes, Ninguém Sabe Que Estou Aqui enxerga além da amargura musical ao recuperar a voz de um homem torturado por aquilo que foi impossibilitado de ser.

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