sexta-feira, 31 de julho de 2020

Crítica | A Caçada (The Hunt)

Bacurau gringo

Filmes ousados sempre terão o meu respeito. Numa época de inúmeras produções “pensadas” para todos os públicos, é impossível não reconhecer a coragem de certos cineastas\companhias em tocar em temas polêmicos sem grande pudor. Algo que A Caçada faz com contundência. Com o padrão Blumhouse de qualidade, o ácido longa dirigido por Craig Zobel (Os Últimos da Terra) sustenta a sua apenas competente trama na feroz crítica sociopolítica. Embora falte ao realizador domínio sobre as convenções básicas do cinema de horror, a tensão, por exemplo, é muito prejudicada pelo viés irônico do texto, ele compensa ao atacar com sagacidade a polarização que tomou conta dos EUA (e do Brasil também) nos últimos anos. 


Sem medo de fazer inimizades (até a diretora Ava DuVernay é citada num momento), The Hunt (no original) testa as nossas expectativas ao se indignar contra um “sistema” totalmente contraproducente para àqueles que realmente precisam. A quem serve este Fla x Flu político? Quem verdadeiramente ganha algo com isso? É fácil idiotizar os idiotas. É fácil atacar os globalistas, os racistas, os homofóbicos, os indivíduos que renegam a ciência. Basta olhar para os arquétipos propostos por Zobel para compreendermos os motivos deles estarem sendo “caçados” pelo senso comum. Num primeiro momento, o cineasta é criativo estreitar o elo entre o absurdo e a realidade. Sem querer revelar muito, o argumento é inteligente ao subverter as leis do porte de arma, da legitima defesa e da propriedade (uma trinca cara para os eleitores de certo presidente) para catalisar o humor, a violência e por consequência a imprevisibilidade da trama.

Por mais o frisson inicial se esvaia ao longo do segundo ato, o roteiro contorna o claro desnível narrativo ao gradativamente tornar o seu ataque mais contundente. Quem se acha no direito de julgar\condenar essas pessoas citadas acima são tão melhores assim? É efetivo na luta contra a desigualdade? Ou só está querendo criar\reforçar uma imagem? É aqui que a sátira pensada por A Caçada ganha potência. No momento em que decide debochar a elite liberal com “consciência social”, Zobel catapulta a trama. A partir da perspectiva da ‘bad-ass’ Crystal (Betty Gilpin, esbanjando fisicalidade e cinismo em cena), o longa se revolta contra àqueles que arrotam caviar e querem debater justiça social. Mais do que simplesmente escancarar a hipocrisia, o roteiro questiona a verdade no discurso pretensamente superior. A Caçada mostra sob uma perspectiva extrema as sequelas da ignorância, da falta de diálogo, da polarização política, da hostilidade de ambas as partes.

Embora faça um uso tolo de algumas referências literárias, a alusão à Revolução dos Bichos é um tanto simplória, The Hunt impacta ao propor uma afiada reflexão sobre o horror por vezes escondido na “liberdade de expressão”. Um filme que bate naqueles que merecem apanhar e também naqueles que precisam apanhar. Nunca subestime uma tartaruga enraivecida.

Nenhum comentário: