quarta-feira, 20 de maio de 2020

Do Fundo do Baú | Sonhos (1990)

Ter uma pérola como Sonhos (1990) disponível no Youtube me faz querer agradecer o autor da postagem. No auge da sua maturidade, o legendário diretor Akira Kurosawa reflete sobre as múltiplas facetas do ser humano com misto de peso e poesia. Um filme cujo a mensagem crítica e pessoal não envelheceu um segundo sequer nas últimas duas décadas. Com uma visão subjetiva sobre a existência humana, o realizador nipônico transforma os seus sonhos (e também pesadelos) em contos densos, imaginativos e provocantes. 



Transitando entre o real e o mitológico com maestria, Akira Kurosawa trata o homem com um ser dicotômico. O mesmo que destrói é capaz de criar. O mesmo que resiste é capaz de ceder. O mesmo que assusta é capaz de enternecer. Seja em sua camada mais lúdica da obra, seja na mais contundente, Sonhos é sensível ao tocar em temas como o medo da morte, a perversidade humana, a culpa, o luto, a saudade, a depressão, a ignorância. Mais do que imprimir os seus medos mais íntimos em tela, o cineasta traduz o sentimento de uma geração (a sua) ferida pela guerra, pela destruição nuclear, pela transformação cultural, pelo frenesi do capitalismo estrangeiro, pela deterioração ambiental. E isso sem nunca deixar de enxergar a beleza\expressividade do cenário.


A dicotomia contida na premissa permite que Kurosawa desfile o seu vasto repertório técnico. Quando precisa chocar, o realizador nipônico o faz com um senso de imersão\coordenação impressionante. Os contos O Túnel e principalmente O Demônio que Chorava são dilacerantes tanto tematicamente, quanto visualmente. Impressiona, por sinal, a capacidade de Akira Kurosawa em explorar o poder das suas cores\imagens. Se nas passagens mais esperançosas o cineasta extrai a paz da vigorosa fusão\saturação delas, nos momentos mais pessimistas a monocromia potencializa a angústia. Os seus quadros (verdadeiras obras de arte em muitas sequências) exprimem a natureza contrastante dos contos e reforçam as sensações impostas por eles sem depender tanto do texto. 


O branco da nevasca, o azul dos soldados mortos, o vermelho do lago dos demônios. A expressiva cinematografia texturizada embute um sentido no que elas realçam. A opressão, a putrefação, a violência. As imagens aqui, por si só, exercem o medo, o desespero, a agonia e o fascínio. O mesmo, aliás, vale para o por vezes desconcertante design de som. Sonhos traz também muito (obviamente) do seu criador. Mais do que falar sobre a sua arte (a reverência a Van Gogh é genial) e dos seus medos (a ameaça atômica lhe causava terror), Akira Kurosawa termina refletindo sobre a sua vida.


Do alto dos seus 80 anos na época do lançamento, o cineasta encerra em paz e celebrando a sua existência. A mesma criança que temia a morte no primeiro conto, se torna um adulto encantado por uma procissão fúnebre. Uma espécie “turista” num mundo que ficou no passado capaz de ouvir sobre o fim com serenidade e admiração. Um senso de conclusão nobre que faz de Sonhos, em sua essência mais pura, um verdadeiro autorretrato de Akira Kurosawa. Mais do que concretizar algumas das suas criações mais involuntárias, o cineasta japonês expõe com uma franqueza revigorante a sua nostálgica visão de mundo, a natureza humana da sua obra e principalmente o seu descontentamento quanto ao perigoso rumo da nossa civilização.


E sim, o Vincent Van Gogh de Sonhos é interpretado pelo diretor Martin Scorsese. 

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