sexta-feira, 22 de maio de 2020

Crítica | Um Crime Para Dois (The Lovebirds)

O talento que sustenta os clichês

O tipo de filme que não tem tido grande sorte no circuito comercial, Um Crime Para Dois encontrou na Netflix a “janela” perfeita de lançamento. Uma das primeiras grandes vítimas da quarentena, The Lovebirds (no original) foi produzido pela Paramount e negociado com a gigante do streaming após a explosão da pandemia do COVID-19, o divertido longa dirigido por Michael Showalter chega no momento certo. Não estamos diante de um grande representante da comédia moderna. Longe disso. Diante de um cenário tão pesado e turbulento, no entanto, a produção estrelada pelos ótimos Kumail Nanjiani e Issa Rae oferece tudo aquilo que precisamos. Uma trama maluca, engraçada e recheada de clichês sustentada pelo talento de dois expoentes do humor americano. Comédia descompromissada para tempos difíceis. 


No papel, Um Crime para Dois não traz nada de novo. Mais uma vez temos um casal com problemas no relacionamento, um assassinato e uma transloucada jornada em busca de provas que pudessem os inocentar daquele crime. Os clichês, porém, podem render muito quando bem utilizados. Aqui, por mais que o argumento assinado por Aaron Abrams e Brendal Gall subaproveite o senso de perigo\urgência em torno da empreitada da dupla, o diretor Michael Showalter (do excelente Doentes de Amor) compensa ao dar a liberdade que Kumail Nanjiani e Issa Rae precisavam para transformar um ‘plot’ ordinário em algo minimamente autoral. Enquanto narrativamente o roteiro se apega a soluções convencionais (eu diria previsíveis), os carismáticos comediantes elevam o nível do material ao preencher o humor de situação com diálogos afiados e genuinamente irônicos. Sempre que possível, o longa estende claramente o tapete vermelho para a verborragia cômica da dupla.

São nestes (muitos) momentos que Um Crime para Dois se destaca. Embora o letal antagonista vivido pelo subestimado Paul Sparks (brilhante na série Boardwalk Empire) consiga trazer alguma carga de tensão ao escapista arco central, o melhor do filme está na (fofa) troca de farpas Jibran e Leilani. Como se não bastasse a cativante química entre os dois, Michael Showalter é sagaz ao tratar a crise do casal como o principal agente catalisador da trama. Mais do que rir da total falta de aptidão deles para a ação, o cineasta foca no desajuste entre os dois, no impacto da explosão de violência na espirituosa relação do casal. Em várias passagens, inclusive, o realizador encontra brechas para os pequenos (e facilmente reconhecíveis) monólogos de Kumail Nanjiani e Issa Rae. O insight dela sobre o gênero documental me fez chorar de rir.

E isso sem nunca sacrificar o singelo clima de romance. Vamos ser bem sinceros. Escondida na premissa envolvendo assassinatos e uma sociedade secreta, na verdade, existe uma comédia romântica do tradicional tipo ‘screwball’. Aquelas bem doidinhas que, após uma fase áurea nos anos 1930 e 1940, caíram em desuso em Hollywood. A ação, aqui, mais capitaliza o processo de reconexão entre Jibran e Leilani do que alimenta certo suspense ou tensão. Michael Showalter joga limpo com o espectador ao tratar a busca por provas como uma mera “desculpa” para um estudo descompromissado dos problemas do casal. Mesmo subaproveitando algumas situações, a sequência da orgia, por exemplo, claramente poderia ter rendido mais, o diretor humaniza os clichês ao se encantar pela conexão entre os personagens, pela disfuncionalidade funcional desta relação. Uma abordagem leve e irreverente que faz de Um Crime Para Dois uma obra relevante para os dias em que vivemos. Alguns filmes só querem divertir. Não existe nada errado nisso.

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