quarta-feira, 6 de maio de 2020

Crítica | Tigertail

O preço de um sonho

Um idoso introspectivo é obrigado a confrontar os erros do passado quando se vê sozinho após a morte da sua querida mãe. A partir desta singela premissa, Tigertail toca em profundos dilemas afetivos ao investigar os sacrifícios de um imigrante na busca pela concretização dos seus sonhos. Embora filmado nos EUA, o longa escrito e dirigido por Alan Yang transita por temas reconhecíveis aos olhos de qualquer um que tenha tentado buscar a prosperidade longe do seu país natal. Com um misto de sensibilidade e austeridade, o realizador é cuidadoso ao estudar os contrastes em torno da jornada de um homem corroído pelos seus sonhos e pelas expectativas nunca concretizadas. Um filme denso sobre as escolhas que moldam, que frustram e as que machucam involuntariamente. Fazendo um brilhante uso da narrativa em perspectiva, o protagonista, aqui, conta a sua própria história, Tigertail esbanja comedimento ao mergulhar na intimidade de um homem arrependido. Mais do que um simples contraponto, o passado surge como um vislumbre de uma realidade que nunca se concretizou. É no choque entre as duas linhas temporais que Alan Yang escancara as raízes dramáticas da sua obra. Como aquele homem romântico, ativo e apaixonado se transformou numa figura solitária, triste e incapaz de expressar seus sentimentos? O que aconteceu no meio do caminho? Qual a origem de tamanha frustração? Inspirado na história do seu próprio pai, Yang universaliza as coisas ao reconhecer em Grover (Tzi Ma) conflitos facilmente identificáveis. A sua solidão nasce do êxito material. A rigor, ele chegou no lugar em que projetava estar quando largou tudo no seu pequeno vilarejo em Taiwan e migrou para os EUA. Tudo com muito trabalho, com muita entrega, com muito sacrifício. Tamanha obstinação, porém, cobra o seu preço. E é ele que Tigertail se dispõe a investigar.


Sustentado pela precisa montagem não linear, Alan Yang é habilidoso ao transformar o luto e o vazio no agente catalisador da trama. A frieza apática do presente de Grover diz tanto quanto o aconchego avermelhado do seu passado. Ali, na solidão do seu apartamento, o protagonista finalmente é obrigado a refletir sobre os seus passos. Sobre aquilo que teve de abrir mão para concretizar o seu sonho material. Carinho, amores, liberdade, juventude... Se para o jovem Grover o futuro era uma página empolgante a ser escrita, para o velho Grover restava a frustração das expectativas nunca concretizadas. Algo que, por sinal, se traduz com expressividade na eclética fotografia de Nigel Bluck, impecável ao usar as cores (e a ausência dela) para reforçar o sentimento de melancolia. Embora centrado no silencioso idoso, Yang é inteligente ao traduzir os altos e baixos do protagonista a partir da sua relação com o feminino. O retrato deste homem comum e sonhador é construído gradativamente a partir destes pequenos lampejos da sua vida. As memórias afetivas, aqui, surgem como peças de um quebra cabeça humano e intimista. Da relação do pequeno Grover com a sua preocupada avó, por exemplo, conhecemos a sua natureza escapista e sonhadora. Do sólido elo entre ele e a sua independente figura materna descobrimos a raiz da sua obstinação. Do fascínio exposto pelo amor da sua vida enxergamos o homem vibrante e apaixonado. Da pragmática aproximação com a sua futura esposa vislumbramos o quanto ele estava disposto a abrir mão para conquistar aquilo que gostaria que fosse seu. Através deste vai e vem temporal, Yang constrói um sólido estudo de personagem, principalmente pela sutileza com que investiga o processo de corrosão afetiva de Grover. O preço que ele teve que pagar para concretizar os seus sonhos.


É na relação entre o protagonista e a sua filha, a igualmente independente Angela, entretanto, que reside o melhor de Tigertail. A falta de diálogo entre pai e filha é o que melhor escancara as sequelas de uma vida de frustrações. Impulsionado pelas sóbrias atuações de Tzi Ma e Christine Ko, Alan Yang estreita o elo entre o passado e o futuro ao expor as consequências de tamanha frieza e apatia. A música que antes inspirava passou a machucar. As tentativas de criar algo saudável se tornaram cada vez mais escassas. O instrumento musical esquecido no canto da sala traduz com maestria o estado de espírito do protagonista. A amargura de Grover refletiu no seu matrimônio, na sua vida pessoal e por consequência na criação dos seus filhos. A falta de intimidade entre eles causa desconforto no público. O silêncio machuca. O realizador consegue em passagens quase sempre austeras realçar tanto aquilo que os afastava, quanto aquilo que os unia. Nas entrelinhas, Yang é sagaz ao questionar a supervalorização da felicidade material em torno do opressivo sonho americano. Existia uma lacuna a ser preenchida. Um espaço que nem a mais bela das casas ou a mais confortável das rotinas é capaz de preencher. Por mais que o argumento se apresse ao investigar os conflitos pessoais de Angela, o diretor compensa ao traçar um complexo paralelo entre os dois e ao fazer desta tentativa de reaproximação entre pai e filha a força motora do longa. O que fica bem claro na poética sequência final.


Intimista e profundo, Tigertail é um drama familiar maduro sobre as nossas escolhas e as consequências delas. Mais um reflexivo filme asiático sobre os perigos em torno da devoção a felicidade material. Embora vez ou outra simplifique as motivações do protagonista, principalmente na sua impulsiva fase jovem, Alan Yang ressalta a universalidade do seu texto ao dialogar com dilemas reconhecíveis na jornada afetiva de qualquer imigrante. Uma janela para o presente sob a agora frustrada perspectiva do passado.

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