Poucos filmes conseguiram
traduzir o processo de corrupção do dinheiro público de forma tão didática e ao
mesmo tempo complexa quanto Má Educação. Um estudo espirituoso sobre a cultura
do “rouba, mas faz” e a naturalização da apropriação indébita. Ao contrário de
muitos títulos do gênero, o longa dirigido pelo promissor Corey Finley (do
superestimado Puro Sangue) não se sente seduzido pelo ‘modus operandi’ do roubo
em si. E nem precisava. Estamos diante de um assunto de domínio praticamente
público. O grande trunfo da produção original HBO está no esmero com que o argumento
foca na corrupção moral, no desvio de caráter, no elemento humano. O que faz
total sentido quando o cenário do rombo em questão é uma escola pública dos
EUA. Sem intenção de focar somente no estrago causado na comunidade, Finley
esbanja perspicácia ao pintar um retrato tridimensional do corruptor, evitando reduzir
tudo ao “a ocasião faz o ladrão” ao mergulhar na intimidade de um homem vaidoso,
persuasivo e surpreendentemente preocupado em entregar o seu melhor.
Prestes a ver o seu milionário
esquema ruir, um determinado personagem, num determinado momento do longa, se
defende dizendo que “se quisesse roubar estaria trabalhando em Wall Street”.
Por mais incrível que pareça, existe verdade nesta sentença. O grande
diferencial de Má Educação está na propriedade com que o argumento investiga a
figura do corruptor. Esqueça o maniqueísmo. Esqueça também qualquer flerte com
a grandiosidade. Não é preciso ser um mestre do crime para desviar dinheiro
público. Consciente disso, o roteiro assinado por Mike Makowsky, com base no
artigo do New York Magazine escrito por Robert Kolker, causa um choque natural
ao tornar tudo inicialmente o mais rotineiro possível. Por trás de um desvio
milionário existem homens e mulheres comuns. Cidadãos ativos. Pais e mães de
família. Ninguém chega perto de administrar grandes cifras da noite para o dia.
Existe trabalho. Existe uma carreira pregressa. No caso em questão, existia
sucesso também. Sob a supervisão do querido Frank Tassone (Hugh Jackman), a
escola pública New York Roselyn se tornou referência nos EUA. Top 4, no ano de
2002, entre as instituições de ensino estatais do país. Poucas aprovavam mais
para as grandes universidades. O desempenho não poderia ser mais
impressionante.
Sem a intenção de perder tempo
demais com o processo de desvio em si, algo resumido com objetividade durante a
investigação (pasmem) de uma aluna aspirante à jornalista, Corey Finley torna
tudo mais complexo ao investigar o efeito desta infame descoberta na rotina não
só dos envolvidos, mas da comunidade em questão. Em sua camada mais crítica, Má
Educação é incisivo ao escancarar o quão desprotegido é o sistema de
distribuição de verba pública. Indivíduos sem qualquer tino para o crime
conseguiram por quase uma década desviar milhões com simples maquiagens orçamentárias.
O ‘modus operandi’ é o mesmo. Empresas fantasmas, compras superfaturadas, notas
frias. Tudo o que a gente já viu diversas vezes nos telejornais. Embora sob uma
perspectiva pretensamente micro, o cineasta é perspicaz ao tornar as coisas o
mais universal possível. O desvio surge como algo natural. Tão rotineiro que
nos faz ficar em dúvidas. Mesmo com um ‘plot’ baseado em fatos em mãos, o
diretor se esforça para alimentar certa expectativa quanto ao real papel dos
protagonistas neste esquema. Ao pintá-los como profissionais dedicados e
exemplares, Finley nos permite enxergar os dois lados da moeda. Nos permite
identificar as virtudes e os pecados. Nos permite sentir o efeito “sedutor” do
dinheiro fácil, do cartão corporativo, da sensação de poder oriunda do
prestígio inabalável. O roubo, aos olhos do realizador, não nasce meramente da
ambição, ou da ganância, mas dá certeza de que nada irá acontecer a eles.
É na camada mais intimista de Má
Educação, porém, que o longa assume a sua face mais sólida. Em especial quando
o objeto de estudo é o ambíguo Frank Tassone. Ao contrário de títulos como O
Lobo de Wall Street, que, propositalmente, se seduzem pelo glamour da corrupção,
a produção original HBO escolhe um caminho mais sóbrio e intrigante. À medida
que o estrago ganha contornos midiáticos, Corey Finley mostra sensibilidade ao
investigar as razões dos protagonistas. A sensação de impunidade pode até ser a
porta de entrada para o crime, mas existiu mais por trás de tudo isso. Os
segredos de Tassone vão além do desvio moral. Estamos diante de um homem que
fez da sua imagem o seu cartão de visitas. Por mais que a vaidade sugira certa
superficialidade, no entanto, o roteiro não se dá por satisfeito enquanto não
expõe as múltiplas camadas do superintendente. Existe verdade nele. Existe
também frustração, repressão, dedicação... O roubo, sob a sua distorcida óptica,
assume outro sentido. Tem um pouco de recompensa. Um pouco de cinismo. Um pouco
de revanchismo. Nas entrelinhas, Finley absorve a ambiguidade do personagem ao
realçar a frustração de um professor diante da desvalorização, da falta de
reconhecimento e\ou perspectivas. Como pode um homem responsável pela formação
de tantas crianças e jovens ganhar tão pouco? Como pode o mesmo homem ficar
responsável pela administração de milhões de dólares do contribuinte? Uma conta
que, além de não fechar, expõe um sistema viciado.
O melhor de Má Educação, porém, reside
na estupenda atuação de Hugh Jackman. O dinamismo proposto por Corey Finley e o
senso de ambiguidade pensado pelo roteiro não fariam sentido sem uma
performance com tamanha verdade e profundidade. Talvez pela primeira vez na sua
carreira, Jackman assuma com tanta honestidade o peso da idade. O seu Frank
esconde na vaidade e na persuasão o seu lado mais obscuro. E é nele que vemos o
melhor do ator. O astro da franquia X-Men domina as emoções do seu personagem
com um misto de ironia e intensidade. Jackman aproveita todas as oportunidades
que o roteiro lhe dá. O resultado é alarmante e ao mesmo tempo saboroso. Embora
subaproveite alguns personagens, entre eles a contadora vivida por Allison
Jenney e a estudante interpretada por Geraldine Viswanathan, Má Educação compensa
ao analisar com desenvoltura a natureza do corrupto e a nossa suscetibilidade a
este tipo de mazela social.
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