quarta-feira, 13 de maio de 2020

Crítica | Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica

RPG raiz

Até onde você iria para poder passar mais um dia com um ente querido que se foi? A partir desta singela pergunta, Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica busca no RPG os ingredientes necessários para a construção de uma aventura com muito coração. Fazendo jus ao teor imaginativo dos ‘role-playing games’, o cativante longa dirigido por Dan Scalon se apropria do elemento mitológico com desenvoltura ao entender que as principais respostas estão na ‘quest’. Como de costume nas produções na Pixar, a jornada é parte fundamental da missão. É na aventura que o drama se solidifica, que os elos são criados, que a natureza da obra se revela. Uma comovente história de amizade guiada por sequências de ação empolgantes, uma original construção de mundo, personagens extremamente carismáticos e uma revigorante aura familiar. 



Toda partida de RPG precisa de um mestre. Quanto mais criativo ele for, mais singular tende a ser a experiência. O desafio não é só entreter, ou desafiar, mas nos transportar para um mundo mágico usando poucas referenciais visuais e alguns dados. Embora numa mídia totalmente distinta, podemos dizer que Dan Scalon é um mestre de respeito. Mais do que encher a tela com personagens expressivos e um cenário por si só atraente, o realizador capricha no elemento imersão. O fantástico, aqui, nunca é tratado como uma válvula de escape. Neste mundo mágico em que a magia foi “substituída” pela tecnologia, existem fadas, minotauros, orcs, dragões e elfos, mas também um garoto, o solitário Ian (voz de Tom Holland), deslocado, entristecido e sem rumo. Um tipo facilmente identificável. O herói da vez (se é que devemos chamá-lo assim) é pacato e quase comum. Quase porque, no dia do seu aniversário de 16 anos, ele descobre que o seu saudoso pai deixou um presente pouco convencional. Um cajado, uma pedra poderosa e uma carta contendo um feitiço que o traria de volta por 24 horas. Impulsionado pela euforia do seu irmão mais velho, o imaturo e entusiasta da magia Barley (voz de Chris Pratt), os dois tentam realizar o ritual. O despreparo, porém, cobra o seu preço. Diante de um pequeno grande imprevisto, Ian precisa se unir a Baffley e a metade “concretizada” do seu pai numa missão rumo ao desconhecido, sem sequer desconfiar que o objetivo desta quest poderia estar bem mais próximo do que eles poderiam suspeitar.


Não estamos diante de uma história de guerreiros poderosos. Nem tão pouco do batido arco do escolhido. Dois Irmãos causa um fascínio natural ao, embora situado num mundo mágico de inúmeras possibilidades, nunca se distanciar da rotina urbana. Tal qual as melhores produções da Pixar, o longa foca no intimista estudo de personagem. A busca pelo “mcguffin” (termo cunhado por Steven Spielberg para identificar o elemento narrativo responsável por catalisar a trama) é apenas o divertido ponto de partida para a aventura. A quest pensada por Dan Scalon, porém, vai bem além das peripécias da dupla ao longo de uma reveladora viagem. Por mais que, no papel, o realizador capriche no senso de entretenimento quanto a construção da ação, à medida que a caça ao artefato ganha contornos mais densos ele não foge da raia. A disfuncional dinâmica entre Ian e Barley tem muito a dizer sobre a problemática relação dos irmãos, sobre a diferença entre eles, sobre as suas frustrações, anseios, medos e expectativas. Magia e realidade andam de mãos dadas aqui. A cada novo truque descoberto, uma nova emoção é “destravada”. Scalon mostra sensibilidade ao gradativamente tentar preencher as evidentes lacunas na vida dos protagonistas. O objetivo é importante, torna tudo mais urgente, mas o melhor de Dois Irmãos está na solidificação do crescente elo entre Ian e Barley. A aventura se alimenta da conexão entre eles. O humor se sobressai graças ao conflito de mentalidade entre eles. O drama floresce das descobertas da dupla. Mais do que discutir o impacto do luto, Scalon esbanja profundidade ao falar sobre o amor fraterno, sobre o peso da ausência e a felicidade que é ter alguém capaz de preencher papéis tão caros na formação de qualquer um.


E isso, claro, sem nunca abrir mão da aventura em si. Embora sofra com uma evidente queda de ritmo no segundo ato, Dois Irmãos entrega tudo aquilo que poderíamos esperar de um representante do gênero. Com um visual expressivo e uma abordagem muito própria do universo mitológico, Dan Scalon cria uma experiência familiar e ao mesmo tempo densa. Assim como num arco de RPG, as quests se tornam mais desafiadora à medida que Ian e Blaffey adquirem experiência. O roteiro, claramente influenciado pela trilogia Indiana Jones, brinca com os puzzles sem nunca desvalorizar o potencial de imersão. Mais do que simplesmente resistir à tentação do macro, Scalon torna o micro por si só empolgante. O que falar, por exemplo, da angustiante cena da ponte levadiça, quando a brilhante noção de escala do cineasta só ajuda a traduzir a vulnerabilidade do protagonista. Como se não bastassem os traços expressivos e a colorida construção de mundo, o longa nos presenteia com um ‘mise en scene’ enérgico e criativo. Outro ponto que agrada, e muito, é a maneira com que Scalon explora o humor. Ao contrário da maioria das produções do gênero, o argumento se distancia da infantilização. As piadas são condizentes com a faixa etária dos personagens e consequentemente com o seu público alvo. Sem querer revelar muito, a presença “ausente” da figura paterna no longa desponta com um dos melhores alívios cômicos em tempos dentro do gênero. Impossível não notar a reverência ao clássico da Sessão da Tarde Um Morto Muito Louco.


Com inúmeros predicados estéticos e narrativos, Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica resgata o gênero fantasia do limbo numa aventura leve, engraçada e ao mesmo tempo com o padrão de sensibilidade que a Pixar se acostumou a nos entregar. O real artefato precioso, no fim, sempre esteve próximo, acessível e presente. Aos olhos de Dan Scalon, a ‘quest’ mais difícil na vida de qualquer jovem é amadurecer.

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