No aclamado Corra! (2015), Jordan
Peele escancarou o racismo enraizado na sociedade norte-americana numa afiada sátira
social sobre homens brancos dispostos a transportar a sua consciência para
corpos negros na ânsia de conseguir algo que havia perdido. Mais do que tomar o
corpo, eles queriam se apropriar da raça e apagar a existência (e todo o traço
cultural) daquele indivíduo. O resultado é assustador. Sob a sua peculiar
perspectiva, Peele colocou o dedo na ferida ao questionar (dentre outras
coisas) o papel do negro dentro do EUA. O que separava àqueles que são “aceitos”
daqueles que são marginalizados. Um estudo implacável sobre os personagens que
muitos são obrigados a assumir para pertencer a um mundo hostil e desigual. Um
retrato poderoso que ganha ainda mais sentido quando nos deparamos com títulos
como o corajoso Luce. Uma espécie de continuação indireta de Corra!, o longa
dirigido por Julius Onah reflete sobre esta devastadora questão num thriller
dramático tenso, instigante e provocador. Um filme sobre os rótulos que
asfixiam, que enraivecem e que insistem delimitar a posição do negro dentro de
uma sociedade estruturalmente racista.
Mesmo centrado num contexto
estritamente realista, Luce dialoga diretamente com o hit Corra! ao propor um
estudo mais profundo da feroz crítica pensada por Jordan Peele. Com base na
peça de J.C Lee, adaptada pelo próprio ao lado de Julius Onah, o longa discute
sob a inconformada perspectiva do jovem Luce (Kelvin Harrison Jr.) o
estereotipo do negro afro-americano dentro de um ambiente veladamente
segregador. O preconceito racial, aqui, não está em discussão. É claro para
todos que ele existe. “Você não é tão negro quanto ele”, diz o amigo branco do
protagonista num diálogo aparentemente despretensioso, mas impactante em sua
essência. O racismo, de fato, é debatido em sua camada mais íntima. Mais do que
discutir o impacto deste cenário na identidade de um jovem negro, o realizador
é inteligente ao colocar em cheque velhos padrões. Ao investigar o quanto estes
garotos e garotas estão dispostos a sacrificar para pertencer a um mundo que
insiste em os pré-definir. Luce era o garoto modelo do seu colégio. Genial, altruísta,
atlético, inspirador. Sua infância trágica na África o transformou num exemplo.
Sua conduta o fez um símbolo de esperança. Mas essa era a verdade dele, ou um
personagem que ele criou para ser aceito numa realidade que não era a sua?
Com base nesta provocante
questão, Julius Onah coloca o dedo na ferida ao mergulhar na rotina deste (e de
muitos outros) garotos negros. Num intrigante estudo de personagem, o cineasta se
apropria de enraizados estereótipos raciais ao confrontar Luce a partir da sua
aparentemente confortável perspectiva. Ele tinha tudo. Seus pais adotivos (Tim
Roth e Naomi Watts) eram protetores e bem-sucedidos. Seus colegas de escola o
admiravam sinceramente. Seus professores só conseguiam enxergar o quão
brilhante seria o futuro do jovem. Ele se colocou numa posição de vantagem. Muitos
dos seus amigos, porém, não tiveram a mesma sorte. É neste abismo que separa
duas pessoas que, teoricamente, deveriam ter a mesma chance de prosperar que Onah
aponta o dedo para um sistema hipócrita e desigual. Luce era o negro que a
sociedade estruturalmente racista se acostumou a exaltar. É o modelo Barack
Obama de negritude. Ele sabia disso. É do seu desconforto em perceber a sua
essência ser diluída neste opressivo rótulo, porém, que nasce a sua revolta. E
se ele só quisesse ser mais uma na multidão? E se ele não quisesse ser
protegido por aquilo que projetavam nele? E se ele quisesse colocar um fim
nesta rotina? Qual seria o seu destino? Mais do que realçar a seletividade, Onah
é categórico ao desconstruir o personagem criado por ele e, por consequência,
especular sobre o seu futuro.
Assim como em Corra!, um outro personagem
negro surge como o único capaz de causar o desequilíbrio. Só quem sente na pele
é capaz de reconhecer o problema. E talvez desafiá-lo. Se possuir, claro, forças
para isso. Tão complexa quanto Luce, a professora de história Harriet Wilson
(Octavia Spencer) ajuda a potencializar a crítica proposta pelo longa. A partir
do olhar maduro e desconfiado dela, o diretor Julius Onah propõe um
desconcertante choque de realidade à medida desenvolve a rixa filosófica entre
os dois. As descobertas dela interferem na rotina dele. A mentalidade
revanchista dele causa uma preocupação natural nela. Por mais que o crescente
clima de tensão entre os dois alimente certas expectativas, os furtivos acordes
da marcante trilha sonora, por sinal, contribuem para isso, o cineasta acerta
ao manter o clima de ebulição racial dentro de um ambiente hermético. Ao
contrário de Peele, Onah é ainda mais ousado ao diluir as tintas, ao renegar o
preto no branco. Ele troca a explosão pela implosão. Na perspectiva de Luce ele
é o herói da sua história. Na perspectiva de Wilson ela é a verdade na sua.
Quem está certo? Quem está errado? Mais do que buscar respostas, o argumento
acerta ao usar o suspense como o agente catalisador de uma discussão profunda e
inquietante. Nas entrelinhas, o cineasta é cuidadoso ao traduzir tanto a revolta
daqueles que são limitados, quanto a certeza daqueles que sabem o quão dura
pode ser a vida de um marginalizado pela sociedade. Ao não assumir lados, Onah
permite que a trama siga um curso natural até o seu clímax, indo muito além do
jogo entre gato e rato sugerido ao realçar o drama por trás de tudo isso. No fim,
enxergar a verdade pode não ser necessariamente é o bastante para desafiar uma
realidade tão dura e dolorosa.
Impulsionado pelas soberbas
performances de Octavia Spencer e Kelvin Harrison Jr, esse último magnífico ao
absorver as múltiplas facetas do seu personagem com um misto de dissimulação,
tristeza e humanidade, Luce investiga as angústias de um jovem negro obrigado a
reprimir a sua verdade na busca por aceitação e uma perspectiva de futuro. Mesmo
com algumas arestas a aparar, o clima de incerteza dos pais adotivos merecia
ser abordado com mais profundidade, Julius Onah desafia o estereótipo do negro
inspirador ao exigir igualdade e oportunidade para todos. Os impactantes
minutos finais, porém, mostram que esta é uma batalha longe de ser vencida.
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