quarta-feira, 1 de abril de 2020

Critica | Luce

Vivendo um personagem

No aclamado Corra! (2015), Jordan Peele escancarou o racismo enraizado na sociedade norte-americana numa afiada sátira social sobre homens brancos dispostos a transportar a sua consciência para corpos negros na ânsia de conseguir algo que havia perdido. Mais do que tomar o corpo, eles queriam se apropriar da raça e apagar a existência (e todo o traço cultural) daquele indivíduo. O resultado é assustador. Sob a sua peculiar perspectiva, Peele colocou o dedo na ferida ao questionar (dentre outras coisas) o papel do negro dentro do EUA. O que separava àqueles que são “aceitos” daqueles que são marginalizados. Um estudo implacável sobre os personagens que muitos são obrigados a assumir para pertencer a um mundo hostil e desigual. Um retrato poderoso que ganha ainda mais sentido quando nos deparamos com títulos como o corajoso Luce. Uma espécie de continuação indireta de Corra!, o longa dirigido por Julius Onah reflete sobre esta devastadora questão num thriller dramático tenso, instigante e provocador. Um filme sobre os rótulos que asfixiam, que enraivecem e que insistem delimitar a posição do negro dentro de uma sociedade estruturalmente racista. 



Mesmo centrado num contexto estritamente realista, Luce dialoga diretamente com o hit Corra! ao propor um estudo mais profundo da feroz crítica pensada por Jordan Peele. Com base na peça de J.C Lee, adaptada pelo próprio ao lado de Julius Onah, o longa discute sob a inconformada perspectiva do jovem Luce (Kelvin Harrison Jr.) o estereotipo do negro afro-americano dentro de um ambiente veladamente segregador. O preconceito racial, aqui, não está em discussão. É claro para todos que ele existe. “Você não é tão negro quanto ele”, diz o amigo branco do protagonista num diálogo aparentemente despretensioso, mas impactante em sua essência. O racismo, de fato, é debatido em sua camada mais íntima. Mais do que discutir o impacto deste cenário na identidade de um jovem negro, o realizador é inteligente ao colocar em cheque velhos padrões. Ao investigar o quanto estes garotos e garotas estão dispostos a sacrificar para pertencer a um mundo que insiste em os pré-definir. Luce era o garoto modelo do seu colégio. Genial, altruísta, atlético, inspirador. Sua infância trágica na África o transformou num exemplo. Sua conduta o fez um símbolo de esperança. Mas essa era a verdade dele, ou um personagem que ele criou para ser aceito numa realidade que não era a sua?


Com base nesta provocante questão, Julius Onah coloca o dedo na ferida ao mergulhar na rotina deste (e de muitos outros) garotos negros. Num intrigante estudo de personagem, o cineasta se apropria de enraizados estereótipos raciais ao confrontar Luce a partir da sua aparentemente confortável perspectiva. Ele tinha tudo. Seus pais adotivos (Tim Roth e Naomi Watts) eram protetores e bem-sucedidos. Seus colegas de escola o admiravam sinceramente. Seus professores só conseguiam enxergar o quão brilhante seria o futuro do jovem. Ele se colocou numa posição de vantagem. Muitos dos seus amigos, porém, não tiveram a mesma sorte. É neste abismo que separa duas pessoas que, teoricamente, deveriam ter a mesma chance de prosperar que Onah aponta o dedo para um sistema hipócrita e desigual. Luce era o negro que a sociedade estruturalmente racista se acostumou a exaltar. É o modelo Barack Obama de negritude. Ele sabia disso. É do seu desconforto em perceber a sua essência ser diluída neste opressivo rótulo, porém, que nasce a sua revolta. E se ele só quisesse ser mais uma na multidão? E se ele não quisesse ser protegido por aquilo que projetavam nele? E se ele quisesse colocar um fim nesta rotina? Qual seria o seu destino? Mais do que realçar a seletividade, Onah é categórico ao desconstruir o personagem criado por ele e, por consequência, especular sobre o seu futuro.


Assim como em Corra!, um outro personagem negro surge como o único capaz de causar o desequilíbrio. Só quem sente na pele é capaz de reconhecer o problema. E talvez desafiá-lo. Se possuir, claro, forças para isso. Tão complexa quanto Luce, a professora de história Harriet Wilson (Octavia Spencer) ajuda a potencializar a crítica proposta pelo longa. A partir do olhar maduro e desconfiado dela, o diretor Julius Onah propõe um desconcertante choque de realidade à medida desenvolve a rixa filosófica entre os dois. As descobertas dela interferem na rotina dele. A mentalidade revanchista dele causa uma preocupação natural nela. Por mais que o crescente clima de tensão entre os dois alimente certas expectativas, os furtivos acordes da marcante trilha sonora, por sinal, contribuem para isso, o cineasta acerta ao manter o clima de ebulição racial dentro de um ambiente hermético. Ao contrário de Peele, Onah é ainda mais ousado ao diluir as tintas, ao renegar o preto no branco. Ele troca a explosão pela implosão. Na perspectiva de Luce ele é o herói da sua história. Na perspectiva de Wilson ela é a verdade na sua. Quem está certo? Quem está errado? Mais do que buscar respostas, o argumento acerta ao usar o suspense como o agente catalisador de uma discussão profunda e inquietante. Nas entrelinhas, o cineasta é cuidadoso ao traduzir tanto a revolta daqueles que são limitados, quanto a certeza daqueles que sabem o quão dura pode ser a vida de um marginalizado pela sociedade. Ao não assumir lados, Onah permite que a trama siga um curso natural até o seu clímax, indo muito além do jogo entre gato e rato sugerido ao realçar o drama por trás de tudo isso. No fim, enxergar a verdade pode não ser necessariamente é o bastante para desafiar uma realidade tão dura e dolorosa.


Impulsionado pelas soberbas performances de Octavia Spencer e Kelvin Harrison Jr, esse último magnífico ao absorver as múltiplas facetas do seu personagem com um misto de dissimulação, tristeza e humanidade, Luce investiga as angústias de um jovem negro obrigado a reprimir a sua verdade na busca por aceitação e uma perspectiva de futuro. Mesmo com algumas arestas a aparar, o clima de incerteza dos pais adotivos merecia ser abordado com mais profundidade, Julius Onah desafia o estereótipo do negro inspirador ao exigir igualdade e oportunidade para todos. Os impactantes minutos finais, porém, mostram que esta é uma batalha longe de ser vencida.

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