O que separa o humor
politicamente incorreto do ofensivo? Coragem? Inteligência? Bom senso? Originalidade? Sinceramente, não sou do time que defende que a comédia precise
ter limites. Existem as piadas boas e as piadas ruins. Simples assim. Incomodar,
a meu ver, também está entre os predicados do gênero. Tem uma linha, porém, que
me desconforta. Rir dos poderosos? Ok! Rir daqueles que oprimem? Ok! Rir de
minorias? É mais complicado. Uma abordagem tênue que se torna evidente no
problemático Coffee e Kareem. Produção original Netflix, o longa dirigido por
Michael Dowse (Stuber) se arrisca ao investir num envelhecido humor étnico. O
resultado, além de inconstante e repetitivo, flerta com o ofensivo em muitos
momentos, principalmente por se agarrar a perigosos estereótipos. Nem o talento
de Ed Helms é capaz de contornar os inúmeros vícios narrativos.
Vou ser bem objetivo. O que mais
incomoda em Coffee e Kareem é que ele claramente se inspira num dos meus filmes
favoritos lançados nos últimos anos, o encantador Hunt For The Wilderpeople
(2016). Responsável por apresentar o aclamado diretor Taika Waititi para o
mundo, o longa neozelandês conquistou o público ao investigar a complexa
relação entre um órfão metido a ‘gangsta’ e o seu introspectivo padrasto numa
transformadora fuga pela natureza selvagem. A afiada troca de farpas entre os
dois, potencializada pelo autêntico texto de Waititi, surgiu como um genial
contraponto a proposta afetuosa da obra. A piada, aqui, servia ao drama dos
personagens e a construção do elo entre eles. Um belo exemplo de como provocar através
do humor sem sacrificar importantes elementos narrativos. Um misto de ironia e sensibilidade
que passa longe de existir em Coffee e Kareem. No papel, temos um plot parecido. O policial boa praça Coffee (Ed Helms) entra em rota de colisão com o seu
projeto de enteado Kareem (Terrence Little Gardenhigh) quando os dois
testemunham o assassinato de um corrupto homem da lei e se veem obrigados a
fugir.
No que diz respeito a execução,
no entanto, Coffee e Kareem frustra ao investir num humor ofensivo, recheado de
piadas de cunho racial, personagens estereotipados e soluções extremamente
repetitivas. O tipo de produção escrachada cujo o vigor narrativo se esgota em sua
primeira metade. Num primeiro momento, é curioso ver o argumento assinado pelo
inexperiente Shane Mack se revelar uma verdadeira metralhadora giratória. Os
alvos são tantos e tão incorretos que alimentam certa expectativa. Com um
ferino linguajar "boca suja", o pequeno Kareem faz piadas de cunho sexual, zomba da
polícia, zomba de homens brancos, zomba de tudo o que surge na sua frente. A
química entre Ed Helms e Terrence Little Gardenhigh funciona a contento e a
troca de “experiências” entre os dois é divertida. À medida que a trama avança,
porém, além de investir numa espiral interminável de piadas envolvendo ofensas
homoafetivas e órgãos genitais, Michael Dowse reduz todos os
personagens a meros arquétipos. Tudo é muito fake ou de mau gosto. Sequências
como o bate papo franco num clube de strip-tease, por exemplo, se revelam umas
das poucas em que o longa parece realmente interessado em estreitar os laços
entre os protagonistas.
Coffee é o homem de meia idade
patético obrigado a se tornar herói. Kareem é o garoto que só fala besteira para
se autoafirmar. Tanto a figura materna interpretada por Taraji P. Henson (num
desperdício total de talento), quanto a policial dúbia vivida por Betty Gilpin
(uma das poucas a entender a bomba em que se meteu), descambam em vários
momentos para o histerismo. Michael Dowse simplesmente os reduz a algo
extremamente raso. São personagem que nasceram datados. Somado a isso, o
roteiro é igualmente desastrado ao fazer piadas sobre temas genuinamente
sensíveis, entre ele a violência policial contra negros e a pedofilia, o que só
torna tudo mais desconfortável em diversas passagens. Basta ver como Taika
Waititi abordou a mesma questão em Hunt For the Wilderpeople para percebemos
que o problema não está em rir de algo naturalmente dramático ou polêmico. Como
disse acima, existem piadas boas ou piadas ruins. Aqui elas são só ruins. Embora possua os seus lampejos de
criatividade, a cena de perseguição numa rotatória, em especial, é daquelas
sinceramente divertidas, Coffee e Kareem perde a sua graça à medida que decide
resgatar velhos arquétipos raciais\gênero e rir mais uma vez deles. Além de
esbarrar na perceptível falta de ideias, as referências aos clássicos do cinema de ação nos anos 80 ficaram limitadas aos criativos posteres de divulgação, Michael Dowse falha ao
desenvolver básicos elementos narrativos, reduzindo a jornada dos seus
personagens a um blá-blá-blá inofensivo (no que diz respeito ao senso de
perigo), tolo e previsível.
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