sexta-feira, 3 de abril de 2020

Crítica | Coffee e Kareem

É difícil fazer humor...

O que separa o humor politicamente incorreto do ofensivo? Coragem? Inteligência? Bom senso? Originalidade? Sinceramente, não sou do time que defende que a comédia precise ter limites. Existem as piadas boas e as piadas ruins. Simples assim. Incomodar, a meu ver, também está entre os predicados do gênero. Tem uma linha, porém, que me desconforta. Rir dos poderosos? Ok! Rir daqueles que oprimem? Ok! Rir de minorias? É mais complicado. Uma abordagem tênue que se torna evidente no problemático Coffee e Kareem. Produção original Netflix, o longa dirigido por Michael Dowse (Stuber) se arrisca ao investir num envelhecido humor étnico. O resultado, além de inconstante e repetitivo, flerta com o ofensivo em muitos momentos, principalmente por se agarrar a perigosos estereótipos. Nem o talento de Ed Helms é capaz de contornar os inúmeros vícios narrativos.

Vou ser bem objetivo. O que mais incomoda em Coffee e Kareem é que ele claramente se inspira num dos meus filmes favoritos lançados nos últimos anos, o encantador Hunt For The Wilderpeople (2016). Responsável por apresentar o aclamado diretor Taika Waititi para o mundo, o longa neozelandês conquistou o público ao investigar a complexa relação entre um órfão metido a ‘gangsta’ e o seu introspectivo padrasto numa transformadora fuga pela natureza selvagem. A afiada troca de farpas entre os dois, potencializada pelo autêntico texto de Waititi, surgiu como um genial contraponto a proposta afetuosa da obra. A piada, aqui, servia ao drama dos personagens e a construção do elo entre eles. Um belo exemplo de como provocar através do humor sem sacrificar importantes elementos narrativos. Um misto de ironia e sensibilidade que passa longe de existir em Coffee e Kareem. No papel, temos um plot parecido. O policial boa praça Coffee (Ed Helms) entra em rota de colisão com o seu projeto de enteado Kareem (Terrence Little Gardenhigh) quando os dois testemunham o assassinato de um corrupto homem da lei e se veem obrigados a fugir.


No que diz respeito a execução, no entanto, Coffee e Kareem frustra ao investir num humor ofensivo, recheado de piadas de cunho racial, personagens estereotipados e soluções extremamente repetitivas. O tipo de produção escrachada cujo o vigor narrativo se esgota em sua primeira metade. Num primeiro momento, é curioso ver o argumento assinado pelo inexperiente Shane Mack se revelar uma verdadeira metralhadora giratória. Os alvos são tantos e tão incorretos que alimentam certa expectativa. Com um ferino linguajar "boca suja", o pequeno Kareem faz piadas de cunho sexual, zomba da polícia, zomba de homens brancos, zomba de tudo o que surge na sua frente. A química entre Ed Helms e Terrence Little Gardenhigh funciona a contento e a troca de “experiências” entre os dois é divertida. À medida que a trama avança, porém, além de investir numa espiral interminável de piadas envolvendo ofensas homoafetivas e órgãos genitais, Michael Dowse reduz todos os personagens a meros arquétipos. Tudo é muito fake ou de mau gosto. Sequências como o bate papo franco num clube de strip-tease, por exemplo, se revelam umas das poucas em que o longa parece realmente interessado em estreitar os laços entre os protagonistas.


Coffee é o homem de meia idade patético obrigado a se tornar herói. Kareem é o garoto que só fala besteira para se autoafirmar. Tanto a figura materna interpretada por Taraji P. Henson (num desperdício total de talento), quanto a policial dúbia vivida por Betty Gilpin (uma das poucas a entender a bomba em que se meteu), descambam em vários momentos para o histerismo. Michael Dowse simplesmente os reduz a algo extremamente raso. São personagem que nasceram datados. Somado a isso, o roteiro é igualmente desastrado ao fazer piadas sobre temas genuinamente sensíveis, entre ele a violência policial contra negros e a pedofilia, o que só torna tudo mais desconfortável em diversas passagens. Basta ver como Taika Waititi abordou a mesma questão em Hunt For the Wilderpeople para percebemos que o problema não está em rir de algo naturalmente dramático ou polêmico. Como disse acima, existem piadas boas ou piadas ruins. Aqui elas são só ruins. Embora possua os seus lampejos de criatividade, a cena de perseguição numa rotatória, em especial, é daquelas sinceramente divertidas, Coffee e Kareem perde a sua graça à medida que decide resgatar velhos arquétipos raciais\gênero e rir mais uma vez deles. Além de esbarrar na perceptível falta de ideias, as referências aos clássicos do cinema de ação nos anos 80 ficaram limitadas aos criativos posteres de divulgação, Michael Dowse falha ao desenvolver básicos elementos narrativos, reduzindo a jornada dos seus personagens a um blá-blá-blá inofensivo (no que diz respeito ao senso de perigo), tolo e previsível.

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