Um dos elementos cinematográficos
mais “invisíveis” aos olhos do grande público, a montagem é fundamental para o
êxito de um filme. São muitos os casos dos longas que foram literalmente salvos
ou destruídos na ilha de edição. Recentemente, por exemplo, o Nerdwriter
mostrou como o genérico thriller espacial Passageiros (2016) poderia ter se
tornado um outro filme com um “rearranjo” em sua construção. Às vezes a mágica
acontece, às vezes não. O pior é que não existe certo ou errado. Um filme “mal”
fotografado é fácil de ser identificado. Um filme “mal” dirigido é fácil de ser
notado. Quando o assunto é a montagem, no entanto, tudo é mais complexo. Não
existe uma fórmula. Uma mão pesada, entretanto, é impossível de não ser percebida. Algo que fica bem claro em Anna: O Perigo tem Nome. Luc Besson segue
uma referência no cinema de ação. Na tentativa de reoxigenar uma batida
premissa, porém, o cineasta francês sacrifica o ritmo\peso do seu mais novo
longa em prol de uma montagem truncada que pouco acrescenta a natureza da
premissa. Um thriller de espionagem um tanto romantizado que, ao menos, como de
costume na filmografia do seu realizador, faz do empoderamento feminino o
grande diferencial.
Luc Besson sabe escrever grandes
personagens femininas. Vou além. Ele fez delas o seu grande diferencial. Por
mais que o seu estilo e assinatura própria saltem aos olhos, o cineasta francês
sempre se encantou pela força das suas mulheres. Pela capacidade delas em
invadir um universo masculino e chutar traseiros sem dó nem piedade. Nikita:
Criada Para Matar (1990), por exemplo, é um dos filmes mais influentes dos anos
noventa. Muito do ‘girl power’ que vemos no cinema na atualidade se deve ao
cult estrelado por Anne Parillaud. O arco da ‘junkie’ que se torna uma
assassina letal é ainda hoje requentado. Inclusive pelo próprio Besson. A
rigor, Anna: O Perigo Tem Nome surge como uma versão soviética desta pérola
noventista. Ok, o contexto pode até se outro. Mais tênue e perigoso. Mas, em
sua essência mais pura, é impossível dissociar um longa do outro. O que, a
priori, enfraquece o seu mais novo trabalho. A pesada montagem não linear surge
como uma tentativa de Besson em extrair algo novo do ‘plot’. Em trabalhar os
segredos e as reviravoltas em torno da jornada da jovem russa recrutada pela
KGB para se tornar uma espiã em solo ocidental. O problema é que falta ao
argumento a sobriedade que o contexto em questão exigia. Ao contrário de
Nikita, se desapega da realidade com descuido. Besson sacrifica o estudo de
personagem em prol de antecipáveis ‘plot twists’. A montagem, aqui, simplifica
a construção do arco da protagonista.
O que só não é mais frustrante
graças a capacidade de Luc Besson em descascar as camadas da sua personagem à
medida que mergulha junto dela no submundo da espionagem. O realizador nos
permite conhecer a Anna assassina, a Anna entristecida, a Anna iludida, a Anna
violentada, a Anna vingativa. Tal qual uma matrioska, ele constrói segmentos
que a expõe pouco a pouco. Embora, na ânsia de injetar adrenalina ao arco
central, o diretor não dê muitas brechas para respiros dramáticos, ele é sutil
o bastante para extrair da promissora Sasha Luss emoções genuínas. Vou além.
Para enxergar na sua história de “libertação” um paralelo com o destino de
muitas jovens mulheres devoradas por um ambiente abusivo, implacável e masculino.
O mundo da moda surge como um estiloso recurso visual, como uma fachada
convincente, mas também como um elo com a realidade. Enquanto um estudo sobre
empoderamento feminino, na verdade, Anna funciona bem. Mesmo diante
de uma abordagem demasiadamente romantizada, Besson nos brinda com uma
personagem consciente da sua posição de vulnerabilidade. E extrai disso a sua
letalidade. Ela sabe que tem de seduzir a todos que estão ao seu redor. Ela
sabe que não pode demonstrar fraqueza. Ela sabe que não pode confiar em
ninguém. Anna usa os punhos como arma, usa armas como arma, usa o sexo como
arma. O que poderia soar gratuito num primeiro momento ganha um novo sentido
quando descobrimos as suas reais motivações. O “triângulo amoroso” envolvendo
ela e os agentes da KGB (Luke Evans) e da CIA (Cillian Murphy) agrega ao seu
arco. Besson é esperto ao brincar com o controle da situação. Ao enxergar a
ponta ironia por trás de tudo isso. Nestes momentos, Anna: A Morte tem Nome
merece o crédito por não se levar tão a sério assim. Uma pena que, mais uma
vez, no esforço de proteger segredos, o diretor não dê a mesma atenção para a
tênue relação entre a espiã e a sua superior, vivida por uma expansiva Helen
Mirren.
Apesar do esforço da intrusiva
montagem, Anna: O Perigo tem Nome encontra a sua verdadeira energia no momento
em que invade o cinema de ação. No seu melhor trabalho em anos dentro do
gênero, Luc Besson nos brinda com uma trinca de cenas empolgantes. Aliando
estilo à brutalidade, o realizador cria uma espiã casca grossa. Com movimentos
de câmera criativos e um corajoso uso dos planos mais longos, ele extrai o
máximo da fisicalidade de Sasha Luss em cenas tensas, agressivas e
brilhantemente coreografadas. Anna é uma espécie de John Wick loira e modelo. O
seu ‘modus operandi’ é frio e violento. A sequência da invasão ao bar, por
exemplo, é magistral. A maneira com que Besson alinha o eixo da sua câmera à
mira da arma da protagonista transforma a luta dela contra uma horda de
capangas num sangrento balé contemporâneo. Num todo, aliás, o longa capricha na
direção de arte. Besson extrai o máximo da moda dos anos noventa com uma
elegante fotografia em tons vibrantes e figurinos requintados. No fim, Anna: O
Perigo tem Nome compensa a sua falta de originalidade com um sólido arco
feminino, ação de qualidade e a assinatura de um realizador que sabe apertar os
botões certos na hora certa.
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