terça-feira, 14 de abril de 2020

Crítica | Anna: O Perigo Tem Nome

La Femme Matrioska

Um dos elementos cinematográficos mais “invisíveis” aos olhos do grande público, a montagem é fundamental para o êxito de um filme. São muitos os casos dos longas que foram literalmente salvos ou destruídos na ilha de edição. Recentemente, por exemplo, o Nerdwriter mostrou como o genérico thriller espacial Passageiros (2016) poderia ter se tornado um outro filme com um “rearranjo” em sua construção. Às vezes a mágica acontece, às vezes não. O pior é que não existe certo ou errado. Um filme “mal” fotografado é fácil de ser identificado. Um filme “mal” dirigido é fácil de ser notado. Quando o assunto é a montagem, no entanto, tudo é mais complexo. Não existe uma fórmula. Uma mão pesada, entretanto, é impossível de não ser percebida. Algo que fica bem claro em Anna: O Perigo tem Nome. Luc Besson segue uma referência no cinema de ação. Na tentativa de reoxigenar uma batida premissa, porém, o cineasta francês sacrifica o ritmo\peso do seu mais novo longa em prol de uma montagem truncada que pouco acrescenta a natureza da premissa. Um thriller de espionagem um tanto romantizado que, ao menos, como de costume na filmografia do seu realizador, faz do empoderamento feminino o grande diferencial. 



Luc Besson sabe escrever grandes personagens femininas. Vou além. Ele fez delas o seu grande diferencial. Por mais que o seu estilo e assinatura própria saltem aos olhos, o cineasta francês sempre se encantou pela força das suas mulheres. Pela capacidade delas em invadir um universo masculino e chutar traseiros sem dó nem piedade. Nikita: Criada Para Matar (1990), por exemplo, é um dos filmes mais influentes dos anos noventa. Muito do ‘girl power’ que vemos no cinema na atualidade se deve ao cult estrelado por Anne Parillaud. O arco da ‘junkie’ que se torna uma assassina letal é ainda hoje requentado. Inclusive pelo próprio Besson. A rigor, Anna: O Perigo Tem Nome surge como uma versão soviética desta pérola noventista. Ok, o contexto pode até se outro. Mais tênue e perigoso. Mas, em sua essência mais pura, é impossível dissociar um longa do outro. O que, a priori, enfraquece o seu mais novo trabalho. A pesada montagem não linear surge como uma tentativa de Besson em extrair algo novo do ‘plot’. Em trabalhar os segredos e as reviravoltas em torno da jornada da jovem russa recrutada pela KGB para se tornar uma espiã em solo ocidental. O problema é que falta ao argumento a sobriedade que o contexto em questão exigia. Ao contrário de Nikita, se desapega da realidade com descuido. Besson sacrifica o estudo de personagem em prol de antecipáveis ‘plot twists’. A montagem, aqui, simplifica a construção do arco da protagonista.


O que só não é mais frustrante graças a capacidade de Luc Besson em descascar as camadas da sua personagem à medida que mergulha junto dela no submundo da espionagem. O realizador nos permite conhecer a Anna assassina, a Anna entristecida, a Anna iludida, a Anna violentada, a Anna vingativa. Tal qual uma matrioska, ele constrói segmentos que a expõe pouco a pouco. Embora, na ânsia de injetar adrenalina ao arco central, o diretor não dê muitas brechas para respiros dramáticos, ele é sutil o bastante para extrair da promissora Sasha Luss emoções genuínas. Vou além. Para enxergar na sua história de “libertação” um paralelo com o destino de muitas jovens mulheres devoradas por um ambiente abusivo, implacável e masculino. O mundo da moda surge como um estiloso recurso visual, como uma fachada convincente, mas também como um elo com a realidade. Enquanto um estudo sobre empoderamento feminino, na verdade, Anna funciona bem. Mesmo diante de uma abordagem demasiadamente romantizada, Besson nos brinda com uma personagem consciente da sua posição de vulnerabilidade. E extrai disso a sua letalidade. Ela sabe que tem de seduzir a todos que estão ao seu redor. Ela sabe que não pode demonstrar fraqueza. Ela sabe que não pode confiar em ninguém. Anna usa os punhos como arma, usa armas como arma, usa o sexo como arma. O que poderia soar gratuito num primeiro momento ganha um novo sentido quando descobrimos as suas reais motivações. O “triângulo amoroso” envolvendo ela e os agentes da KGB (Luke Evans) e da CIA (Cillian Murphy) agrega ao seu arco. Besson é esperto ao brincar com o controle da situação. Ao enxergar a ponta ironia por trás de tudo isso. Nestes momentos, Anna: A Morte tem Nome merece o crédito por não se levar tão a sério assim. Uma pena que, mais uma vez, no esforço de proteger segredos, o diretor não dê a mesma atenção para a tênue relação entre a espiã e a sua superior, vivida por uma expansiva Helen Mirren.


Apesar do esforço da intrusiva montagem, Anna: O Perigo tem Nome encontra a sua verdadeira energia no momento em que invade o cinema de ação. No seu melhor trabalho em anos dentro do gênero, Luc Besson nos brinda com uma trinca de cenas empolgantes. Aliando estilo à brutalidade, o realizador cria uma espiã casca grossa. Com movimentos de câmera criativos e um corajoso uso dos planos mais longos, ele extrai o máximo da fisicalidade de Sasha Luss em cenas tensas, agressivas e brilhantemente coreografadas. Anna é uma espécie de John Wick loira e modelo. O seu ‘modus operandi’ é frio e violento. A sequência da invasão ao bar, por exemplo, é magistral. A maneira com que Besson alinha o eixo da sua câmera à mira da arma da protagonista transforma a luta dela contra uma horda de capangas num sangrento balé contemporâneo. Num todo, aliás, o longa capricha na direção de arte. Besson extrai o máximo da moda dos anos noventa com uma elegante fotografia em tons vibrantes e figurinos requintados. No fim, Anna: O Perigo tem Nome compensa a sua falta de originalidade com um sólido arco feminino, ação de qualidade e a assinatura de um realizador que sabe apertar os botões certos na hora certa.

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