Em pleno 2020, Jojo Rabbit é (pasmem) ainda um filme necessário. Títulos com a autenticidade da obra de Taika Waititi são importantes por mostrarem que ninguém está imune ao fantasma da opressão. E que ninguém deve esquecê-lo. Um dos filmes mais corajosos lançados nos últimos anos, o longa compensa as suas pequenas falhas e excessos com inteligência e um feroz viés crítico. Por mais que as feridas causadas pela Segunda Guerra Mundial ainda sejam dolorosas para muitos, o que valida a rejeição daqueles que sentiram na pele as chagas deste conflito, a opção de rir dos fanáticos (e por consequência do fanatismo) surge como uma arma poderosa nas mãos do criativo cineasta neozelandês. Waititi não quer apenas traduzir a dor das vítimas, algo que o faz com surpreendente contundência. Ele quer humilhar os nazistas, ele quer escancarar o absurdo do discurso ariano, ele aponta o dedo para todos os que compartilharam (e ainda compartilham) desta abominável mentalidade e os trata como o pior dos idiotas. Tudo isso sob o olhar de uma ingênua e alienada criança da juventude hitlerista.
Uma abordagem que, por si só,
confere uma aura única a Jojo Rabbit. São muitos os filmes que mostram os
horrores da guerra sob a perspectiva de uma criança. Uma opção que, geralmente,
só torna tudo mais pesado. Títulos como Vá e Veja (1985), Filhos da Guerra
(1990), A Vida é Bela (1997), O Menino do Pijama Listrado (2008) e mais
recentemente A Menina que Roubava Livros (2013) não me deixam mentir. A
diferença, aqui, é que seguimos os passos do “opressor”. Jojo Rabbit, em sua
essência mais pura, é uma obra impactante sobre o efeito da “lavagem cerebral”
na identidade de um indivíduo. Todos estamos sujeitos a este tipo de
manipulação. Uns por vontade própria. Outros por inocência. Muitos por
alienação. Tantos por conveniência. Jojo (Roman Griffin Davis) era um dos muitos “filhos” da juventude
hitlerista. Ele cresceu aprendendo que os Judeus eram uma representação do mal
na Terra, que Adolf Hitler era o líder de uma Alemanha pura e justa, que lutar
pelo seu país (e pelo fuhler) era um motivo de orgulho. Aos dez anos Jojo
queria pegar em armas, queria combater, se orgulhava em fazer parte do exército
nazista. Pouco a pouco, porém, o destemido argumento assinado pelo próprio
Taika Waititi é sagaz ao reinterpretar a visão de mundo do pequeno
protagonista.
Aos olhos de uma criança ingênua,
um judeu poderia ser facilmente ser tratado como uma criatura maléfica quase
mística. Aos olhos dele a violência era (ainda) algo distante. Ou incompreensível. Aos olhos dele o nazismo era um “grupinho” ao qual ele queria pertencer. Mais do que rir da
“precocidade” do pequeno Jojo, Taika Waititi é cuidadoso ao enxergar o vazio
nas crenças do garoto, a falta de compreensão do que era a guerra, a frustração
em não participar de algo que todos ao seu redor faziam parte. E isso sem nunca
pecar pela condescendência. Jojo é odioso em vários momentos. Jojo não se furta
de repetir o discurso que dizimou milhões. Jojo é antissemita, é machista, é
ardiloso. Mesmo que involuntariamente. Este foi o mundo em que ele nasceu. Esta era a infância dele. Com
total consciência disso, Waititi se insurge contra o poder de influência\manipulação
do nazismo ao sempre enxergar além. Tanto do humor, quanto do ódio. A partir da
relação entre ele e a sua mãe, vivida por uma radiante Scarlett Johansson, conhecemos
o Jojo criança, vulnerável e solitário. Ela conhece a natureza bondosa do seu
filho. Ela tem ciência também do que fizeram dele. Ela sabe como “desarmar” o
pequeno aspirante a nazista. Já a partir da relação entre ele e o seu histriônico
amigo imaginário Adolf Hitler, interpretado com impagável extravagância pelo
próprio Taika Waititi, enxergamos o Jojo confuso, raivoso e errático. Mais do
que o pilar desta sátira, o afetado fuhler surge como uma espécie de produto concreto
da manipulação. Tudo que ele diz\sugere já estava na mente de Jojo. Hitler,
aqui, não é um personagem. Ele é uma parte apodrecida de Jojo. Ele é a tirania dentro de Jojo.
O que mais me impressionou em
Jojo Rabbit, porém, foi a maturidade de Taika Waititi em não se prender
demasiadamente ao viés satírico. Sim, tal qual a maioria absoluta dos seus
filmes, estamos diante de uma obra engraçadíssima. Como disse acima, o cineasta
neozelandês não perde a oportunidade de humilhar os nazistas, de debochar
daquilo que eles acreditavam, de ridicularizar a sua pretensa superioridade. Os
diálogos são afiados. O elemento tragicômico do texto é explorado com
mordacidade. O elenco como um todo está impagável. O caricato "sotaque" alemão pensado só idiotiza as atrocidades ditas. A edição ajuda a extrair a
comicidade de um ambiente trágico. O filme, no entanto, só melhora quando o
drama toma conta da tela. Seja em sua camada mais lúdica, seja na mais
realista. É interessante ver a sutileza do argumento, por exemplo, em desconstruir
a imagem “nazista” de Jojo a partir do seu contato com o “inimigo”. Elsa
(Thomasin Mckenzie, esbanjado intensidade) catalisa a trama ao entender que não
poderia ser atingida por um pirralho de dez anos. A postura combativa dela, aos
olhos de Waititi, é o antidoto contra a tirania. A partir de diálogos
profundos e uma troca de farpas tipica de irmãos, o diretor investiga a raiz do preconceito com propriedade. O
desconhecimento é o combustível da manipulação. A verdade pode ser dura,
incômoda, mas é transformadora. A metamorfose de Jojo é marcada pela dor, pelo
choque, pela ausência, pelo horror. A borboleta, numa belíssima referência ao poderoso
clássico Nada de Novo no Front (1930), surge para reforçar isso. No fim, mesmo
em lados opostos desta perversa equação, ambos são vítimas. Waititi faz questão
de frisar isso. O que nos leva ao impactante clímax. Me arrisco a dizer que
poucos títulos do gênero conseguiram mostrar o que foi o fim da Segunda Guerra
Mundial para os alemães. Qual foi o preço cobrado por tamanha alienação. O
humor e a extravagância, aqui, apenas atenuam. O olhar de espanto de Jojo para
o seu mundo (potencializado pela enérgica condução de Waititi) é dilacerante.
Embora perca algumas claras oportunidades, o capitão nazista decadente vivido por Sam Rockwell merecia mais
tempo de tela, Jojo Rabbit traduz o horror da Segunda Guerra Mundial com uma
incorreção audaciosa. No embalo das soberbas performances de Roman Griffin
Davis e Archie Yates, que, com um misto de charme, inocência e ‘timing’ cômico,
nos permitem enxergar uma perversa face do nazismo poucas vezes explorada no
cinema, Taika Waititi acerta em cheio ao não deixar se seduzir pelos excessos.
O exagero da sátira em nenhum momento macula a dor dos fatos. Ou a tensão
imposta pelo conflito. As pequenas imperfeições do longa são atenuadas pela
extrema sensibilidade fílmica do realizador. O mesmo Waititi que debocha é
capaz de tirar do papel aqui uma das sequências mais desconcertantes da
história recente do cinema. Um verdadeiro tapa na cara daqueles que achavam que
Jojo Rabbit seria “apenas” uma brincadeirinha de criança.
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