sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Crítica | Entre Realidades (Horse Girl)

Insanidade paranormal

O que diferencia os grandes suspenses psicológicos dos demais é a capacidade do roteiro manter duas (ou mais) linhas de possibilidades sem prejudicar o todo. A ambiguidade, a meu ver, é a alma do negócio. Vamos pegar o exemplo de A Ilha do Medo (2010), um dos melhores títulos do gênero lançado nos últimos anos. A partir da história da investigação de um detetive em um sinistro sanatório, o mestre Martin Scorsese conseguiu fazer com que o suspense e o estudo da psique do personagem caminhem de mãos dadas do começo ao fim. A cada nova descoberta do policial vivido por Leonardo DiCaprio as linhas narrativas se aproximam. Melhor, se confundem. Seria ele parte de uma conspiração? De um experimento? De algo genuinamente perverso? Ou do problema em si? As dúvidas agregam a experiência. A confusão agrega ao arco do protagonista. O público se vê desafiado a pensar. As múltiplas camadas tendem a tornar tudo suficientemente instigante. O drama do protagonista nunca limita a tensão que o cerca. E vice-versa. Ok, nem todo suspense psicológico precisa ter o padrão de A Ilha do Medo. Mas também não precisa ser tão condescendente quanto Entre Realidades. Produção original Netflix, o longa escrito e dirigido por Jeff Baena frustra ao tornar a experiência hermética demais. Mais do que excluir o público da “brincadeira”, o irregular thriller psicológico vacila ao não explorar com a devida propriedade desordens emocionais totalmente reconhecíveis, esvaziando o peso da premissa ao sacrificar o drama em prol de soluções pretensiosas e demasiadamente intrusivas. 



Você provavelmente já se perguntou o que passa na cabeça de um sonâmbulo durante as suas "escapadas". Pois bem, com base neste mistério, Entre Realidades é inicialmente astuto ao explorar os efeitos dos lapsos de consciência na rotina da sua protagonista, a doce Sarah (Alison Brie). No que diz respeito ao estudo de personagem, na verdade, o argumento assinado por Jeff Baena até funciona bem. A desordem da jovem, combinada com alguns segredos envolvendo o passado da sua família, nos permite especular sobre a natureza do problema dela. Sarah é afetuosa. Ela se esforça para se socializar. Mas algo parecia a bloquear. Antes mesmo de trazer o “suspense” para trama, Entre Realidades já causa certa aflição. A solidão dela incomodava. A sua desconexão do mundo em que vivia também. Baena é sutil ao traduzir o processo de deterioração emocional de Sarah, ao tratar a sua crescente esquizofrenia como algo possível. Estamos diante de um problema real. Muitos homens e mulheres são vítimas dele. Ao longo da envolvente primeira metade do longa, o cineasta consegue preencher a trama com alguns sólidos subplots dramáticos. O que, de certa forma, só ajuda a reforçar a nossa sensação de que algo não estava certo com ela. Somado a isso, a descontinua montagem, num primeiro momento, ajuda a potencializar a angústia de Sarah. A tensão, aqui, nasce da incerteza, da vulnerabilidade daquela identificável figura.


No momento em que decide construir a outra linha de possibilidade, a do suspense, Entre Realidades se perde ao lado da sua personagem. Primeiro, a eventual "paranormalidade" por trás da desordem emocional de Sarah simplesmente não convence. Ou sequer instiga. Tudo é muito batido. Os surtos da personagem, antes angustiantes, passam a nos levar para lugar algum. A realidade é devorada abruptamente pela insanidade da personagem. O roteiro de uma hora para outra se torna conveniente. A investigação dela se revela um tanto aleatória. Jeff Baena confunde tensão e inquietação com pretensão. Além disso, ao invés de confiar na verdade da protagonista, algo fundamental em títulos do gênero, o realizador parece ter pena dela. Elementos como a sua fixação com uma série de TV paranormal, por exemplo, são muito mal trabalhados pelo roteiro. O mesmo podemos dizer das suas relações de amizade\afeto. O estranhamento, que deveria ser reforçado pelo olhar de terceiros, como os da enternecida companheira de quarto (Debby Ryan) e do solidário novo namorado (John Reynolds), é atenuado à medida que o cineasta compra a “loucura” da personagem com inadvertida pressa. Falta profundidade. Ele a isola em várias passagens do longa. Não existe uma grande descoberta. Um grande ponto de virada. As facilitações narrativas são tantas que enfraquecem a experiência como um todo. Será que o roteiro não poderia ter ao menos lembrado que não é tão incomum assim sonhar com um rosto “familiar”? O problema não está na presença do elemento Sci-Fi, mas na forma com que ele é explorado dentro da história.


No fim, Entre Realidades se sustenta na magnífica presença de Alison Brie. Um daqueles talentos totalmente subestimados, a expressiva e versátil atriz mergulha nas emoções da sua Sarah com muita veracidade. É impossível não criar uma empatia por ela. Mesmo quando o roteiro não oferece o bastante para sustentar as suas pirações, Brie compensa com um misto de intensidade, inocência e delicadeza. O que só reforça o potencial subaproveitado do longa. Com algumas óbvias virtudes estéticas\narrativas, a trilha sonora de Josiah Steinbrick e Jeremy Zuckerman, em especial, eleva o nível dos momentos de pretensa tensão, Entre Realidades frustra ao abraçar sem consequências a verdade da sua protagonista.

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