sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Crítica | Troop Zero

Fofo, mas real

Um grupo de crianças "fora dos padrões" se une por um motivo peculiar na busca por algo que todos ao seu redor julgavam inacessível. Você provavelmente já viu algum filme com uma premissa semelhante. Mas poucas vezes com tamanha profundidade. Troop Zero é o tipo de obra que, despretensiosamente, consegue invadir temas tão complexos com uma sensibilidade revigorante. Estamos diante um longa sobre o poder da amizade, claro!, mas também sobre luto, empoderamento feminino, bullying, cumplicidade, desigualdade, transformações socioculturais e principalmente sobre as barreiras que muitas mulheres\meninas desde cedo se acostumaram a enfrentar. Um herdeiro natural de títulos como Pequena Miss Sunshine (2006) e Moonrise Kingdom (2012), a produção original Amazon Studios dirigida por Bert e Bertie aquece os nossos corações ao conseguir realçar a fofura das suas cativantes personagens sem nunca se desconectar da realidade. Um filme sobre sonhos e os mistérios do espaço que, apesar do adorável viés lúdico, insiste em manter os dois pés em terra firme. 



Em 1977, a NASA decidiu gravar sons do Planeta Terra e propagá-los através do espaço na expectativa (um tanto simbólica) que houvesse alguma comunicação com uma inteligência alienígena. O Disco de Ouro da Voayager continha músicas, algumas poucas imagens, sons de animais, da natureza, da nossa rotina e uma mensagem gravada por crianças em 55 línguas diferentes. Com base neste fato, Troop Zero retorna aos anos 1970 para narrar a jornada de Christimas (Mckenna Grace), uma garotinha solitária apaixonada pela vida fora da Terra. Influenciada pela sua saudosa mãe, ela acreditava que um dia poderia se comunicar com extraterrestres, caso eles realmente existissem. Na espera de algum sinal, Christmas é pega de surpresa quando descobre que um concurso entre escoteiras definira as vozes que fariam parte do disco que iria viajar para o espaço. Sem um grupo para fazer parte, a entusiasmada garotinha decide, com a ajuda da funcionária do seu compreensivo pai, a resiliente Rayleen (Viola Davis), formar o seu próprio time. O que ela não esperava, porém, era conviver com o olhar de estranhamento geral à medida que decide invadir um mundo que não era seu.


Com um olhar muito autêntico sobre o universo destas crianças, Troop Zero é inteligente ao tratar esta sensação de não pertencimento como algo realmente incômodo. Mesmo sob um viés claramente lúdico, o argumento assinado por Lucy Alibar (indicada ao Oscar pelo extraordinário Indomável Sonhadora) mostra perspicácia ao tratar este grupo de carismáticas crianças como uma espécie de alienígenas dentro do seu próprio mundo. Guiada por uma personagem inocente e genuinamente entusiasmada, a expressão de euforia desastrada de Mckenna Grace, por sinal, é impagável, o longa é sutil ao preencher o arco central com conflitos bem mais densos do que o gênero se acostumou a oferecer. Sem nunca renegar a essência infantil do longa, Bert e Bertie conseguem refletir com propriedade sobre obstáculos que acompanham muitos indivíduos ao longo das suas vidas. A desigualdade social, refletida com astúcia no colorido cenário, é um problema. A disfuncionalidade familiar é outro. As barreiras impostas e autoimpostas são cristalinas. Ao tentar fazer parte de uma realidade que não era a sua, Christmas se depara não só com o bullying, mas com o desencorajamento, com a falta de oportunidades, com a falta de voz num mundo (ainda) regido por padrões\convenções rígidas. A falta de uma figura materna gerou uma menina “moleca”. A falta de recursos só ampliava o seu distanciamento do que todos consideravam o “padrão”. Uma perda tão precoce gerou traumas e sequelas que nem a mente mais escapista era capaz de superar. Se por um lado o longa se encanta pelo senso de cumplicidade daqueles que viviam à “margem”, por outro é maduro o bastante para refletir sobre o futuro daquelas crianças. Até querer algo, Christmas vivia bem. Feliz. Bastou ela buscar algo fora do seu universo, porém, para enfrentar as barreiras do mundo real, para experimentar a sua verdadeira fragilidade.


O grande diferencial de Troop Zero, na verdade, está na capacidade do texto em tratar temas tão reconhecíveis com uma despretensão consciente. Bert e Bertie conseguem repercutir os dilemas de uma criança, sob um ponto de vista genuinamente infantil, sem diminuí-los. Ou desmerecê-los. Tudo é muito simples e ao mesmo tempo profundo. As respostas são óbvias porque elas são naturais. Se por um lado a vívida fotografia em tons amarelados de James Whitaker (Obrigado Por Fumar) confere uma aura ‘feel good’ ao longa, por outro o roteiro é cuidadoso ao investigar os conflitos dos seus simpáticos personagens com solidez. Se por um lado a direção descolada da dupla emule Wes Anderson ao construir uma pitoresca visão de mundo setentista, por outro o filme é categórico ao discutir a perspectiva feminina num período de transformação. Um arco que cresce, diga-se de passagem, graças a sagacidade do argumento em tratar a aspirante a advogada vivida por Viola Davis como uma espécie de modelo\vislumbre das garotas. Ela traz consigo o peso da experiência. Dos obstáculos impostos. Dos sonhos despedaçados e daqueles que permanecem. Com a sua usual intensidade (e um cabelo black power maravilhoso), Davis cria um tipo rico. Uma mulher frustrada, mas não amargurada. Para ela o futuro ainda era uma página a ser escrita. E a troca de experiências entre esta mulher formada e um grupo de crianças “fora dos padrões” é a melhor coisa de Troop Zero. Por incrível que pareça, Rayleen tem muito a aprender também com a nova geração. As crianças trazem consigo uma inquietude precoce contagiante. É a partir desta figura que o roteiro mais se aproxima da realidade. “Se você viver mais 9 anos, você vai faturar muito dinheiro”, diz Rayleen para Joseph (Charlie Shotwell), um jovem consciente da sua feminilidade e habilidoso no corte de cabelo. A realidade dos LGBTs nos anos 1970 e 1980 era dura. E ela, graças a qualidade do texto, se revela o tipo de personagem com muito a dizer para aquele grupo de crianças prestes a enfrentar a vida como ela é. 


É legal ver, aliás, como Troop Zero consegue ir além da figura de Christmas sem nunca se distanciar demais do seu arco. Por mais que o restante do núcleo infantil não compartilhe de camadas tão densas e o argumento flerte com soluções facilmente antecipáveis, Bert e Bernie compensam ao escancarar a incômoda sensação de não pertencimento a partir da engraçadíssima perspectiva desta improvável tropa de escoteiros. Com personalidades muito distintas (e bem exploradas pelo argumento), enquanto a destemida Hell No (Milan Ray) não aceita levar desafora para casa, o já citado Joseph encontra a sua voz ao longo da jornada. É através deles que o filme reflete sobre as transformações. Sobre o poder da amizade neste espinhoso processo de afirmação. Sobre a importância de se lutar para ter uma voz própria e nunca aceitar um não como resposta. O elo entre os personagens é brilhantemente construído\desenvolvido. Existe muita sinceridade. Muito entrosamento também. O elenco infantil é de primeira, capitaneado por esta pequena monstrinha chamada McKenna Grace. No fim, são elas (as crianças) que guiam esta pequena pérola chamada Troop Zero. Com uma reconstrução de época autêntica e uma trilha sonora memorável, David Bowie poucas vezes fez tanto sentido, o longa emociona pelos motivos certos. Mais do que realmente entender os seus personagens e o mundo em que eles habitam, a película cativa ao subverter normas\padrões tão repressivos, defendendo com leveza e descontração que o futuro, tal qual a imensidão do espaço, deve ser desbravado por mentes livres e sonhadoras.

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