quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Crítica | Parasita

Em busca da saúde material

Vamos direto ao ponto. Poucos filmes conseguiram traduzir o efeito da desigualdade com tanta ferocidade quanto Parasita. Talvez por isso o filme tenha arrebatado o público ao redor do mundo, conquistado um alcance raro para uma produção do gênero e por consequência garantido expressivas seis indicações ao Oscar. É fácil se reconhecer em Parasita. Se sentir, ao mesmo tempo, parte do problema e vítima dele. Como de costume na sua filmografia, o aclamado diretor Bong Joon-Ho (O Hospedeiro) coloca o dedo em algumas enraizadas feridas sociais com gosto ao mergulhar na disfuncional relação entre duas famílias separadas por barreiras visíveis e também invisíveis. Embora se sustente em uma série de pequenas (mas perceptíveis) facilitações narrativas, o cineasta sul-coreano compensa ao renegar o frequente maniqueísmo embutido em tramas sobre diferenças de classes. Ao tornar tudo o mais cinza possível, Joon Ho renega tanto a vilanização dos mais ricos, quando a exaltação dos mais pobres. Os seus personagens habitam no mundo real. São falhos, oportunistas, por vezes perversos, por vezes compreensivos. Um ambiente tênue regido por convenções frágeis, ambições comuns e falsas expectativas. Por trás deste ecossistema de aparências, no entanto, existe a verdade. A dura e insensível verdade. E é ela que Bong Joon Ho busca escancarar aqui. 



Enquanto se concentra nas barreiras visíveis, Parasita é um filme delicioso. Com um senso de humor afiadíssimo, Bong Joon Ho enche a tela de energia ao narrar a jornada de uma peculiar família sul-coreana diante de uma oportunidade de ouro. Cansado de sobreviver na base do “jeitinho”, o esperto Kim (Woo-sik Choi) é contratado para dar aulas de inglês para a filha de um casal de ricaços. Inebriado pelo novo ambiente, ele encontra na ingenuidade dos patrões a chance de empregar outros integrantes da sua família. Com dinamismo narrativo e um afiado senso de humor, o realizador é habilidoso ao arquitetar inicialmente o tênue elo entre duas realidades completamente distintas. “Eles são bondosos porque são ricos”, diz a matriarca da família num insight que faz todo o sentido sob a perspectivas dos novos funcionários. Joon Ho é inteligente ao tratar a realidade urbana como uma espécie de bússola dos seus personagens. Quando mais mergulhado nela, mais você está preparado para lidar com ela. Os patrões, do alto do isolamento da sua riqueza, são facilmente “engolidos” por ela. Os empregados, afundados na pobreza, aprenderam a “reagir” a ela. Repare, por exemplo, como enquanto a janela dos ricos dá para um jardim quase idílico, a janela dos pobres dá para o mundo real. Sem filtros, sem paisagismo, sem beleza. As coincidências narrativas, neste primeiro momento, são desenvolvidas com extrema astúcia pelo roteiro. Tal qual os seus personagens, o cineasta seduz o público a acreditar que tudo aquilo seria possível. O clima de manipulação dita o tom do elétrico ato inicial. E nós, como verdadeiros patinhos, caímos no seu golpe. É fácil se seduzir por tipos tão manipulativos. O que, por sinal, nos coloca muito mais na posição dos patrões do que propriamente dos empregados.


E esse talvez seja o principal mérito de Parasita. O “nós contra eles” não têm tanta vez aqui. Não da forma com que esperávamos. Ao se concentrar muito mais nas barreiras visíveis, realçadas pelo primoroso trabalho de direção de arte\design de produção, Bong Joon Ho é sagaz ao nos colocar em constante dúvida sobre a natureza dos seus personagens. Se por um lado o ousado plano da família de oportunistas cause um frisson instantâneo, por outro a aparente vulnerabilidade dos patrões nos deixa com um pouco de remorso. Se por um lado o caos na entulhada habitação dos empregados traduz com clareza as suas motivações, a “convidativa” mansão de luxo dos patrões não sugere poder e\ou opressão. Eles não são os culpados pela crise financeira, pela falta de oportunidades, pela miséria. Os ricaços são apenas parte de um “ecossistema” desigual e injusto. Mesmo em posições completamente opostas, as duas famílias fazem pretensamente parte de um mesmo tabuleiro. Talvez por isso fica fácil se identificar com ambos os lados. O que é fundamental para o êxito de Parasita. Todo ato, no entanto, gera uma reação. Uma resposta que, num cenário tão instável, pode causar um estrago bem maior que o esperado. Para muitos, pior do que não ter é perder o pouco conseguido. Consciente disso, Joon Ho é enfático ao tratar a verdade como o agente catalisador da sua obra. No primeiro grande ponto de virada da trama, o realizador torna tudo ainda mais insano ao traduzir - sob a sua inusitada perspectiva - a luta dos seus personagens pelo mínimo de dignidade. Por mais que o aguardado ‘plot twist’ surja de uma solução forçada, o tipo de facilitação narrativa dispensável, o cineasta sul-coreano ao menos entrega o esperado ao expandir a sua pesada crítica com tensão e um crescente senso de perigo. Todos ali tinham muito a perder. Todos ali estavam cansados de olhar para “cima” com medo. 


Num estalar de dedos, graças a magnífica condução de Bong Joon Ho e ao talentosíssimo elenco (o experiente Kang-ho Song e a magnética So-dam Park roubam o show), Parasita ganha uma nova face. Ainda mais ferina, perigosa, arrojada. À medida que a verdade se faz presente, as barreiras visíveis vão sendo demolidas. E o que vemos é de embrulhar o estômago. É no pretenso isolamento da mansão que nasce o segundo (e claramente o melhor) ponto de virada da trama. Uma reviravolta (se é que podemos chamá-la assim) brilhantemente construída. Num momento de intimidade extrema, Joon Ho é enfático ao finalmente evidenciar as barreiras invisíveis. Aquelas que verdadeiramente segregam, machucam, chocam. Elas existem, sempre existiram, mas muitos simplesmente optam por não enxergá-las. Ou se esforçam para não as revelar. Por mais que os efeitos desta sequência sejam um tanto quanto abruptos, o cineasta é astuto ao traduzir com clareza o abismo que realmente os separava. Nas mãos dele, um simples comentário pode ser mais doloroso do que uma apunhalada. Um olhar (ou um gesto) pode dizer tanto quanto mil palavras. A sua direção intimista só aquece o clima de ebulição social alimentado pelo texto. Os símbolos falam por si só. O senso de geografia cênica de Joon Ho torna tudo mais desconcertante. Quem disse que ainda hoje não vivemos numa sociedade de castas? A imersiva fotografia de Kyung-pyo Hong reforça os contrastes com muito estilo. Sem querer revelar muito, a sequência da tempestade é uma aula de cinema. O flerte com o fundo do poço nunca foi tão literal. Mais do que simplesmente puxar o tapete do espectador, o sul-coreano nos faz cair na real junto dos personagens. Um sentimento potencializado pela visceralidade do clímax. A desigualdade, como disse na abertura deste texto, nunca foi tão evidente. Bong Joon Ho é implacável ao mostrar qual o preço a ser pago para que possamos pertencer (ou ao menos compartilhar) desta versão urbana do Éden.


No fim, porém, não existem vitoriosos neste duelo de classes. Uma hora ou outra a desigualdade atinge o topo. O “cheiro” da pobreza se faz sentir. Ao tratar o descolamento da realidade como o pior dos crimes, Bong Joon Ho provoca o espectador ao se perguntar quais são os verdadeiros parasitas desta história. Aqueles que “sugam” para sobreviver, ou aqueles que só tem olhos para a sua saúde material?

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