Vamos direto ao ponto. Poucos
filmes conseguiram traduzir o efeito da desigualdade com tanta ferocidade
quanto Parasita. Talvez por isso o filme tenha arrebatado o público ao redor do
mundo, conquistado um alcance raro para uma produção do gênero e por
consequência garantido expressivas seis indicações ao Oscar. É fácil se
reconhecer em Parasita. Se sentir, ao mesmo tempo, parte do problema e vítima
dele. Como de costume na sua filmografia, o aclamado diretor Bong Joon-Ho (O
Hospedeiro) coloca o dedo em algumas enraizadas feridas sociais com gosto ao
mergulhar na disfuncional relação entre duas famílias separadas por barreiras
visíveis e também invisíveis. Embora se sustente em uma série de pequenas (mas
perceptíveis) facilitações narrativas, o cineasta sul-coreano compensa ao
renegar o frequente maniqueísmo embutido em tramas sobre diferenças de classes.
Ao tornar tudo o mais cinza possível, Joon Ho renega tanto a vilanização dos
mais ricos, quando a exaltação dos mais pobres. Os seus personagens habitam no
mundo real. São falhos, oportunistas, por vezes perversos, por vezes
compreensivos. Um ambiente tênue regido por convenções frágeis, ambições comuns
e falsas expectativas. Por trás deste ecossistema de aparências, no entanto,
existe a verdade. A dura e insensível verdade. E é ela que Bong Joon Ho busca
escancarar aqui.
Enquanto se concentra nas
barreiras visíveis, Parasita é um filme delicioso. Com um senso de humor
afiadíssimo, Bong Joon Ho enche a tela de energia ao narrar a jornada de uma peculiar
família sul-coreana diante de uma oportunidade de ouro. Cansado de sobreviver
na base do “jeitinho”, o esperto Kim (Woo-sik
Choi) é contratado para dar aulas de inglês para a filha de um casal de
ricaços. Inebriado pelo novo ambiente, ele encontra na ingenuidade dos patrões
a chance de empregar outros integrantes da sua família. Com dinamismo narrativo
e um afiado senso de humor, o realizador é habilidoso ao arquitetar
inicialmente o tênue elo entre duas realidades completamente distintas. “Eles
são bondosos porque são ricos”, diz a matriarca da família num insight que faz
todo o sentido sob a perspectivas dos novos funcionários. Joon Ho é inteligente
ao tratar a realidade urbana como uma espécie de bússola dos seus personagens.
Quando mais mergulhado nela, mais você está preparado para lidar com ela. Os
patrões, do alto do isolamento da sua riqueza, são facilmente “engolidos” por
ela. Os empregados, afundados na pobreza, aprenderam a “reagir” a ela. Repare,
por exemplo, como enquanto a janela dos ricos dá para um jardim quase idílico,
a janela dos pobres dá para o mundo real. Sem filtros, sem paisagismo, sem
beleza. As coincidências narrativas, neste primeiro momento, são desenvolvidas
com extrema astúcia pelo roteiro. Tal qual os seus personagens, o cineasta
seduz o público a acreditar que tudo aquilo seria possível. O clima de
manipulação dita o tom do elétrico ato inicial. E nós, como verdadeiros
patinhos, caímos no seu golpe. É fácil se seduzir por tipos tão manipulativos. O
que, por sinal, nos coloca muito mais na posição dos patrões do que propriamente
dos empregados.
E esse talvez seja o principal mérito de Parasita. O “nós contra eles”
não têm tanta vez aqui. Não da forma com que esperávamos. Ao se concentrar
muito mais nas barreiras visíveis, realçadas pelo primoroso trabalho de direção
de arte\design de produção, Bong Joon Ho é sagaz ao nos colocar em constante
dúvida sobre a natureza dos seus personagens. Se por um lado o ousado plano da
família de oportunistas cause um frisson instantâneo, por outro a aparente
vulnerabilidade dos patrões nos deixa com um pouco de remorso. Se por um lado o
caos na entulhada habitação dos empregados traduz com clareza as suas
motivações, a “convidativa” mansão de luxo dos patrões não sugere poder e\ou
opressão. Eles não são os culpados pela crise financeira, pela falta de oportunidades,
pela miséria. Os ricaços são apenas parte de um “ecossistema” desigual e
injusto. Mesmo em posições completamente opostas, as duas famílias fazem
pretensamente parte de um mesmo tabuleiro. Talvez por isso fica fácil se
identificar com ambos os lados. O que é fundamental para o êxito de Parasita. Todo
ato, no entanto, gera uma reação. Uma resposta que, num cenário tão instável,
pode causar um estrago bem maior que o esperado. Para muitos, pior do que não
ter é perder o pouco conseguido. Consciente disso, Joon Ho é enfático ao tratar
a verdade como o agente catalisador da sua obra. No primeiro grande ponto de
virada da trama, o realizador torna tudo ainda mais insano ao traduzir - sob a
sua inusitada perspectiva - a luta dos seus personagens pelo mínimo de
dignidade. Por mais que o aguardado ‘plot twist’ surja de uma solução forçada,
o tipo de facilitação narrativa dispensável, o cineasta sul-coreano ao menos
entrega o esperado ao expandir a sua pesada crítica com tensão e um crescente
senso de perigo. Todos ali tinham muito a perder. Todos ali estavam cansados de
olhar para “cima” com medo.
Num estalar de dedos, graças a magnífica condução de Bong Joon Ho e ao talentosíssimo elenco (o experiente Kang-ho Song e a magnética So-dam Park roubam o show), Parasita ganha uma nova face. Ainda mais ferina, perigosa, arrojada. À medida
que a verdade se faz presente, as barreiras visíveis vão sendo demolidas. E o
que vemos é de embrulhar o estômago. É no pretenso isolamento da mansão que
nasce o segundo (e claramente o melhor) ponto de virada da trama. Uma
reviravolta (se é que podemos chamá-la assim) brilhantemente construída. Num
momento de intimidade extrema, Joon Ho é enfático ao finalmente evidenciar as
barreiras invisíveis. Aquelas que verdadeiramente segregam, machucam, chocam. Elas
existem, sempre existiram, mas muitos simplesmente optam por não enxergá-las. Ou
se esforçam para não as revelar. Por mais que os efeitos desta sequência sejam um tanto quanto abruptos, o cineasta é astuto ao traduzir com clareza o abismo que realmente os separava. Nas mãos dele, um simples comentário
pode ser mais doloroso do que uma apunhalada. Um olhar (ou um gesto) pode dizer tanto quanto mil palavras. A sua direção intimista só aquece o clima de ebulição social alimentado pelo texto. Os símbolos falam por si só. O senso de
geografia cênica de Joon Ho torna tudo mais desconcertante. Quem disse que
ainda hoje não vivemos numa sociedade de castas? A imersiva fotografia de Kyung-pyo
Hong reforça os contrastes com muito estilo. Sem querer revelar muito, a sequência da tempestade é uma aula de
cinema. O flerte com o fundo do poço nunca foi tão literal. Mais do que
simplesmente puxar o tapete do espectador, o sul-coreano nos faz cair na real
junto dos personagens. Um sentimento potencializado pela visceralidade do
clímax. A desigualdade, como disse na abertura deste texto, nunca foi tão
evidente. Bong Joon Ho é implacável ao mostrar qual o preço a ser pago para
que possamos pertencer (ou ao menos compartilhar) desta versão urbana do Éden.
No fim, porém, não existem vitoriosos neste duelo de classes. Uma hora
ou outra a desigualdade atinge o topo. O “cheiro” da pobreza se faz sentir. Ao
tratar o descolamento da realidade como o pior dos crimes, Bong Joon Ho provoca
o espectador ao se perguntar quais são os verdadeiros parasitas desta história.
Aqueles que “sugam” para sobreviver, ou aqueles que só tem olhos para a sua
saúde material?
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