Kramer Vs Kramer é considerado
por muitos até hoje uma referência quando o assunto são filmes sobre o
divórcio. Lançado em 1979, o longa dirigido por Robert Benton conquistou o
público e a crítica ao abordar um tema tabu que naquele momento entrava em pauta na sociedade norte-americana. Nele, após sempre colocar o seu trabalho acima da
sua família, um ausente pai (vivido por Dustin Hoffman) se vê obrigado a readequar
a sua rotina quando a sua frustrada esposa (interpretada por Meryl Streep) decide
abandonar o lar e deixar o filho sob os seus cuidados. Por tocar em temas tão
espinhosos para a época com delicadeza e uma veia popular, Kramer Vs Kramer foi aclamado.
Mais do que receber cinco estatuetas do Oscar, incluindo a de Melhor Filme, a
película ligou um bem-vindo sinal de alerta para a vulnerável posição da
criança diante do litígio e a importância da divisão de responsabilidades na criação. O que ajuda a explicar o seu êxito. Basta uma
simples revisão, porém, para percebermos que estamos diante de uma produção que
não envelheceu tão bem em alguns aspectos. Dirigido, roteirizado e produzido por homens, Kramer Vs
Kramer desequilibrou a balança ao tornar a mãe a grande “vilã” da equação. Um
cenário que, apesar do esforço do roteiro em justificá-lo, dialoga bem pouco
com a realidade. Algo que, quatro décadas depois, fica bem claro quando nos
deparamos com esta pequena pérola chamada História de um Casamento. Conduzido
com semelhante delicadeza por Noah Baumbach, a produção original Netflix
investiga este doloroso processo sob uma perspectiva profunda, compreensiva e (desta
vez) absolutamente igualitária. Um retrato intimista que, por não escolher
lados, torna tudo mais tênue ao traduzir o corrosivo efeito do divórcio na
rotina de uma funcional família moderna. E isso numa obra brilhantemente
escrita, com um particular senso de humor involuntário, sólidos conflitos
dramáticos e performances arrasadoras.
Desde a sua fantástica cena de
abertura, quando numa comovente montagem narrada pelos protagonistas entendemos
o que foi aquela relação e os sentimentos que a nutriam, História de um
Casamento atesta a preocupação de Noah Baumbach quanto ao senso de isonomia da
trama. Com os seus diálogos ágeis e ao mesmo tempo complexos, o cineasta preza
pelos detalhes como poucos ao propor um raio-x de um casamento próximo do fim.
Tudo é muito reconhecível. O sentimento de desconforto. A incerteza com relação
ao passo a ser dado. O receio quanto ao estrago que o litígio poderia causar.
Embora ambientado num universo de exceção, o efêmero mundo do showbiz, Baumbach
é categórico ao exaltar sempre a “normalidade” dos seus personagens. Eles são
pessoas comuns, como eu ou vocês, repleto de falhas, vícios, virtudes,
inseguranças, frustrações. Sem nunca tomar partido dos seus protagonistas, o
realizador desvenda com um olhar humano os dois lados desta moeda. Ambos
possuem o seu lugar de fala. Em muitos momentos, Baumbach chega ao extremo de usar
o recurso do foco duplo e do ‘fade in\fade out’ para dividir imageticamente (e
simetricamente) o espaço deles em tela. Quase que como numa sessão de análise de
casais. Se um se lamenta aqui, o outro se lamenta acolá. Se um explode numa
cena, o outro explode mais à frente. Se um canta, o outro idem. O diretor é
astuto ao construir a visão sobre o todo a partir destas “rimas narrativas”. Ao
longo da primeira metade do longa, em especial, justamente quando o contido
Charlie (Adam Driver) e a expansiva Nicole (Scarlett Johansson) perdem a
capacidade de diálogo, o roteiro causa um fascínio natural ao investigar o
estado de espírito do casal a partir destes momentos individuais. Como não se
desarmar, por exemplo, com o compulsivo choro de fragilidade dela após uma
derradeira manifestação de força, ou o olhar de incredulidade dele diante das
hostis intenções dos seus advogados. No recorte destes fragmentos, Baumbach é
enfático ao deixar claro que eles têm muito mais a perder do que a ganhar com
tudo isso.
E por que o divórcio tem que sair
na base do litígio? É aqui que, na verdade, História de um Casamento assume a
sua face mais superlativa. Superando as expectativas, o roteiro assinado por
Noah Baumbach não se contenta em explorar somente o efeito do divórcio na
rotina do casal de artistas. Como disse acima, o diretor é mais uma vez contundente
ao enxergar o todo da situação. A começar pelos motivos que ajudaram a deteriorar
uma relação tão sólida. Com personagens maduros e um texto franco,
Baumbach toca em feridas reais ao refletir sobre o machismo involuntário, sobre
a desilusão causada por promessas não cumpridas, sobre o choque de visões de
mundo, sobre traição (afetiva\moral). Sem um pingo de julgamento, o longa
traduz as falhas sem desmerecer as virtudes do casal. Um pai afetuoso pode
ser infiel e egoísta. Uma mãe zelosa pode tomar decisões caóticas e contraditórias. Ao mesmo tempo,
Baumbach se preocupa também em revelar aquilo que os une. O seu amor pelo pequeno
Henry (Azhy Robertson), óbvio, mas também a admiração mútua entre
eles, a orgulhosa veia artística dos dois, o carinho, o respeito, a
cumplicidade, o amor. Eles seguem tendo muito em comum, mesmo quando decidem tomar
decisões totalmente diferentes. Mais do que respeitar o delicado tema, Baumbach
zela pela identidade dos seus protagonistas. O que torna tudo muito
justificável aos olhos do público. Graças ao misto de sutileza e profundidade
com que o longa trata os conflitos de Nicole e Charlie, fica fácil entender
quando um decide tomar uma decisão mais drástica, ou o outro tenta buscar o
diálogo num momento claramente inoportuno. Nada e nem ninguém está preparado
para lidar com uma ruptura tão triste. Tão irremediável. As reações deles, tal qual na vida real,
são intempestivas, drásticas, inconsequentes, incomodas.
É quando os protagonistas começam
a agir com o fígado, por sinal, que História de um Casamento expõe a sua face
mais crítica. Sem nunca invalidar\relevar os sentimentos\atos dos seus
personagens, Noah Baumbach é ferino ao questionar o dilacerante impacto da
indústria do divórcio no presente dos seus personagens. Sim, acordos "pacíficos" não são tão interessantes para aqueles que faturam milhão com o divórcio. Com uma visão autêntica
sobre o assunto em questão, o realizador mostra presença de espírito ao revelar
a venal interferência dos advogados sobre o casal, ao realçar a
insensibilidade, a banalidade e a fragilidade do processo judicial. O meio se
transforma num perigoso agente catalisador. Tudo o que já era ruim fica pior
quando ameaças, acusações e altas contas passam a fazer parte da equação. Sem
querer revelar muito, o impacto desta devastadora etapa se torna evidente na
magnífica sequência do confronto. Nela, numa explosão de dor, angústia e mágoa,
a verdade de ambos os personagens se choca finalmente num desesperador surto de
sincericídio. Apenas um dos inúmeros momentos avassaladores do longa. Na transição para o terço final, inclusive, o longa se permite focar um pouco mais na figura de Charlie e na sua difícil batalha em busca do que ele considera seus direitos. É bom
frisar, no entanto, que Baumbach não parece interessado em simplesmente
vilanizar a figura dos advogados. Muito pelo contrário. Enquanto a expansiva defensora
de Nicole, Nora (Laura Dern), esconde na sua gana um sentimento de justiça
envolvendo a ingrata posição da mulher no processo de divórcio, o sereno advogado
de Charlie, Bert (Alan Alda), esconde na sua aparente morosidade a preocupação
de alguém experiente que sabe bem até onde o estrago poderia chegar. No fim, o
longa é lúcido o bastante para entender o quão tênue pode ser a linha que
separa os vitoriosos dos derrotados (se é que existe algum triunfo) diante de uma causa tão espinhosa.
Uma mistura de sentimentos
potencializada, primeiro, pela direção naturalista de Noah Baumbach. Um dos
maiores expoentes do cinema ‘indie’, o realizador flerta com a
linguagem teatral ao interferir o mínimo possível na “ação” dos seus
personagens. Nas passagens mais dramáticas, em especial, ele investe em
imersivos planos longos e enquadramentos mais abertos, trocando os cortes por
sutis movimentos de câmera na tentativa de capturar o peso das cenas\atuações
em sua máxima potência. O resultado é de uma verdade impressionante. No embalo
do seu afiado texto, Baumbach é igualmente habilidoso ao atenuar o clima da
trama com o seu inspirado senso de humor involuntário. Afundados num turbilhão
de emoções, os seus personagens nem sempre reagem da forma esperada, o
que rende situações genuinamente engraçadas. Nos momentos certos, Baumbach sabe
enxergar a imaturidade do casal, sabe rir das suas respostas mais desastradas,
sabe realçar o absurdo da situação. E isso, verdade seja dita, sem nunca
enfraquecer os seus respectivos arcos dramáticos, nem tão pouco contrariar o
esmero do argumento em traduzir o esforço destes dois pais na tentativa de
proteger o seu querido filho ao longo do processo.
Predicados que,
indiscutivelmente, são valorizados pelas maiúsculas atuações. E que elenco!
Impressiona como todas as peças do jogo de xadrez proposto por Noah Baumbach
entregam o seu melhor. O que falar, por exemplo, da robusta presença de Adam
Driver. Na pele de um artista que sabe que é genial, o eclético ator captura o
misto de empáfia, inércia e devoção do seu Charlie com fervor. Ele consegue ser
um babaca num momento e na cena seguinte um pai afetuoso, um homem fragilizado,
um marido entristecido. Um traço tridimensional que se
repete na primorosa atuação de Scarlett Johansson. Se Driver traz consigo a sua
imponente presença cênica, a igualmente versátil atriz explode sempre que
preciso com uma energia radiante. Com enorme maturidade, ela desafia com vigor
alguns velhos arquétipos maternais ao abraçar a independência da sua Nicole. Estamos
diante de uma mulher que sabe o que quer, indomável, errática e ao mesmo tempo
carinhosa, adulta, excelente mãe. Juntos,
aliás, os dois exibem não só uma extraordinária química em cena, como também um
precioso (e revelador) trabalho de expressão corporal, o que só torna os
momentos de ruptura mais desconcertantes. Mesmo diante destas emocionantes
performances, no entanto, o elenco de apoio não faz feio. Laura Dern surge reluzente na pele de uma advogada com sede de justiça. O seu ‘insight’
sobre o ideal de maternidade é simplesmente genial. Já o veterano Alan Alda
injeta um misto de doçura, compreensão e cansaço na trama ao se revelar uma
consciente voz da experiência. Por fim, Ray Liotta sintetiza a face mais materialista neste embate ao viver um extravagante defensor com apetite
por dinheiro\holofote.
No embalo da magnífica trilha
sonora de Randy Newman, que, com seus delicados acordes de piano\violino\flauta,
sublinha as emoções dos seus personagens com muita verdade, Histórias de um
Casamento é um triunfo do cinema moderno. Embora ambientado num geralmente disfuncional
mundo de vaidades, o longa humaniza os conflitos dos seus personagens ao pintar
um retrato compreensivo e ao mesmo tempo urbano sobre um casal falho disposto a
tudo para lutar pela única coisa que eles não estão dispostos a abrir mão: o
seu filho. Um relato intimista capaz de comprovar que, diante de um processo
tão desnorteante, ninguém está imune ao erro. Um
filme denso, triste, real e necessário.
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