sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Crítica | História de um Casamento (Marriage Story)

O corrosivo efeito (da indústria) do divórcio

Kramer Vs Kramer é considerado por muitos até hoje uma referência quando o assunto são filmes sobre o divórcio. Lançado em 1979, o longa dirigido por Robert Benton conquistou o público e a crítica ao abordar um tema tabu que naquele momento entrava em pauta na sociedade norte-americana. Nele, após sempre colocar o seu trabalho acima da sua família, um ausente pai (vivido por Dustin Hoffman) se vê obrigado a readequar a sua rotina quando a sua frustrada esposa (interpretada por Meryl Streep) decide abandonar o lar e deixar o filho sob os seus cuidados. Por tocar em temas tão espinhosos para a época com delicadeza e uma veia popular, Kramer Vs Kramer foi aclamado. Mais do que receber cinco estatuetas do Oscar, incluindo a de Melhor Filme, a película ligou um bem-vindo sinal de alerta para a vulnerável posição da criança diante do litígio e a importância da divisão de responsabilidades na criação. O que ajuda a explicar o seu êxito. Basta uma simples revisão, porém, para percebermos que estamos diante de uma produção que não envelheceu tão bem em alguns aspectos. Dirigido, roteirizado e produzido por homens, Kramer Vs Kramer desequilibrou a balança ao tornar a mãe a grande “vilã” da equação. Um cenário que, apesar do esforço do roteiro em justificá-lo, dialoga bem pouco com a realidade. Algo que, quatro décadas depois, fica bem claro quando nos deparamos com esta pequena pérola chamada História de um Casamento. Conduzido com semelhante delicadeza por Noah Baumbach, a produção original Netflix investiga este doloroso processo sob uma perspectiva profunda, compreensiva e (desta vez) absolutamente igualitária. Um retrato intimista que, por não escolher lados, torna tudo mais tênue ao traduzir o corrosivo efeito do divórcio na rotina de uma funcional família moderna. E isso numa obra brilhantemente escrita, com um particular senso de humor involuntário, sólidos conflitos dramáticos e performances arrasadoras.



Desde a sua fantástica cena de abertura, quando numa comovente montagem narrada pelos protagonistas entendemos o que foi aquela relação e os sentimentos que a nutriam, História de um Casamento atesta a preocupação de Noah Baumbach quanto ao senso de isonomia da trama. Com os seus diálogos ágeis e ao mesmo tempo complexos, o cineasta preza pelos detalhes como poucos ao propor um raio-x de um casamento próximo do fim. Tudo é muito reconhecível. O sentimento de desconforto. A incerteza com relação ao passo a ser dado. O receio quanto ao estrago que o litígio poderia causar. Embora ambientado num universo de exceção, o efêmero mundo do showbiz, Baumbach é categórico ao exaltar sempre a “normalidade” dos seus personagens. Eles são pessoas comuns, como eu ou vocês, repleto de falhas, vícios, virtudes, inseguranças, frustrações. Sem nunca tomar partido dos seus protagonistas, o realizador desvenda com um olhar humano os dois lados desta moeda. Ambos possuem o seu lugar de fala. Em muitos momentos, Baumbach chega ao extremo de usar o recurso do foco duplo e do ‘fade in\fade out’ para dividir imageticamente (e simetricamente) o espaço deles em tela. Quase que como numa sessão de análise de casais. Se um se lamenta aqui, o outro se lamenta acolá. Se um explode numa cena, o outro explode mais à frente. Se um canta, o outro idem. O diretor é astuto ao construir a visão sobre o todo a partir destas “rimas narrativas”. Ao longo da primeira metade do longa, em especial, justamente quando o contido Charlie (Adam Driver) e a expansiva Nicole (Scarlett Johansson) perdem a capacidade de diálogo, o roteiro causa um fascínio natural ao investigar o estado de espírito do casal a partir destes momentos individuais. Como não se desarmar, por exemplo, com o compulsivo choro de fragilidade dela após uma derradeira manifestação de força, ou o olhar de incredulidade dele diante das hostis intenções dos seus advogados. No recorte destes fragmentos, Baumbach é enfático ao deixar claro que eles têm muito mais a perder do que a ganhar com tudo isso.


E por que o divórcio tem que sair na base do litígio? É aqui que, na verdade, História de um Casamento assume a sua face mais superlativa. Superando as expectativas, o roteiro assinado por Noah Baumbach não se contenta em explorar somente o efeito do divórcio na rotina do casal de artistas. Como disse acima, o diretor é mais uma vez contundente ao enxergar o todo da situação. A começar pelos motivos que ajudaram a deteriorar uma relação tão sólida. Com personagens maduros e um texto franco, Baumbach toca em feridas reais ao refletir sobre o machismo involuntário, sobre a desilusão causada por promessas não cumpridas, sobre o choque de visões de mundo, sobre traição (afetiva\moral). Sem um pingo de julgamento, o longa traduz as falhas sem desmerecer as virtudes do casal. Um pai afetuoso pode ser infiel e egoísta. Uma mãe zelosa pode tomar decisões caóticas e contraditórias. Ao mesmo tempo, Baumbach se preocupa também em revelar aquilo que os une. O seu amor pelo pequeno Henry (Azhy Robertson), óbvio, mas também a admiração mútua entre eles, a orgulhosa veia artística dos dois, o carinho, o respeito, a cumplicidade, o amor. Eles seguem tendo muito em comum, mesmo quando decidem tomar decisões totalmente diferentes. Mais do que respeitar o delicado tema, Baumbach zela pela identidade dos seus protagonistas. O que torna tudo muito justificável aos olhos do público. Graças ao misto de sutileza e profundidade com que o longa trata os conflitos de Nicole e Charlie, fica fácil entender quando um decide tomar uma decisão mais drástica, ou o outro tenta buscar o diálogo num momento claramente inoportuno. Nada e nem ninguém está preparado para lidar com uma ruptura tão triste. Tão irremediável. As reações deles, tal qual na vida real, são intempestivas, drásticas, inconsequentes, incomodas.


É quando os protagonistas começam a agir com o fígado, por sinal, que História de um Casamento expõe a sua face mais crítica. Sem nunca invalidar\relevar os sentimentos\atos dos seus personagens, Noah Baumbach é ferino ao questionar o dilacerante impacto da indústria do divórcio no presente dos seus personagens. Sim, acordos "pacíficos" não são tão interessantes para aqueles que faturam milhão com o divórcio. Com uma visão autêntica sobre o assunto em questão, o realizador mostra presença de espírito ao revelar a venal interferência dos advogados sobre o casal, ao realçar a insensibilidade, a banalidade e a fragilidade do processo judicial. O meio se transforma num perigoso agente catalisador. Tudo o que já era ruim fica pior quando ameaças, acusações e altas contas passam a fazer parte da equação. Sem querer revelar muito, o impacto desta devastadora etapa se torna evidente na magnífica sequência do confronto. Nela, numa explosão de dor, angústia e mágoa, a verdade de ambos os personagens se choca finalmente num desesperador surto de sincericídio. Apenas um dos inúmeros momentos avassaladores do longa. Na transição para o terço final, inclusive, o longa se permite focar um pouco mais na figura de Charlie e na sua difícil batalha em busca do que ele considera seus direitos. É bom frisar, no entanto, que Baumbach não parece interessado em simplesmente vilanizar a figura dos advogados. Muito pelo contrário. Enquanto a expansiva defensora de Nicole, Nora (Laura Dern), esconde na sua gana um sentimento de justiça envolvendo a ingrata posição da mulher no processo de divórcio, o sereno advogado de Charlie, Bert (Alan Alda), esconde na sua aparente morosidade a preocupação de alguém experiente que sabe bem até onde o estrago poderia chegar. No fim, o longa é lúcido o bastante para entender o quão tênue pode ser a linha que separa os vitoriosos dos derrotados (se é que existe algum triunfo) diante de uma causa tão espinhosa.


Uma mistura de sentimentos potencializada, primeiro, pela direção naturalista de Noah Baumbach. Um dos maiores expoentes do cinema ‘indie’, o realizador flerta com a linguagem teatral ao interferir o mínimo possível na “ação” dos seus personagens. Nas passagens mais dramáticas, em especial, ele investe em imersivos planos longos e enquadramentos mais abertos, trocando os cortes por sutis movimentos de câmera na tentativa de capturar o peso das cenas\atuações em sua máxima potência. O resultado é de uma verdade impressionante. No embalo do seu afiado texto, Baumbach é igualmente habilidoso ao atenuar o clima da trama com o seu inspirado senso de humor involuntário. Afundados num turbilhão de emoções, os seus personagens nem sempre reagem da forma esperada, o que rende situações genuinamente engraçadas. Nos momentos certos, Baumbach sabe enxergar a imaturidade do casal, sabe rir das suas respostas mais desastradas, sabe realçar o absurdo da situação. E isso, verdade seja dita, sem nunca enfraquecer os seus respectivos arcos dramáticos, nem tão pouco contrariar o esmero do argumento em traduzir o esforço destes dois pais na tentativa de proteger o seu querido filho ao longo do processo.


Predicados que, indiscutivelmente, são valorizados pelas maiúsculas atuações. E que elenco! Impressiona como todas as peças do jogo de xadrez proposto por Noah Baumbach entregam o seu melhor. O que falar, por exemplo, da robusta presença de Adam Driver. Na pele de um artista que sabe que é genial, o eclético ator captura o misto de empáfia, inércia e devoção do seu Charlie com fervor. Ele consegue ser um babaca num momento e na cena seguinte um pai afetuoso, um homem fragilizado, um marido entristecido. Um traço tridimensional que se repete na primorosa atuação de Scarlett Johansson. Se Driver traz consigo a sua imponente presença cênica, a igualmente versátil atriz explode sempre que preciso com uma energia radiante. Com enorme maturidade, ela desafia com vigor alguns velhos arquétipos maternais ao abraçar a independência da sua Nicole. Estamos diante de uma mulher que sabe o que quer, indomável, errática e ao mesmo tempo carinhosa, adulta, excelente mãe. Juntos, aliás, os dois exibem não só uma extraordinária química em cena, como também um precioso (e revelador) trabalho de expressão corporal, o que só torna os momentos de ruptura mais desconcertantes. Mesmo diante destas emocionantes performances, no entanto, o elenco de apoio não faz feio. Laura Dern surge reluzente na pele de uma advogada com sede de justiça. O seu ‘insight’ sobre o ideal de maternidade é simplesmente genial. Já o veterano Alan Alda injeta um misto de doçura, compreensão e cansaço na trama ao se revelar uma consciente voz da experiência. Por fim, Ray Liotta sintetiza a face mais materialista neste embate ao viver um extravagante defensor com apetite por dinheiro\holofote.


No embalo da magnífica trilha sonora de Randy Newman, que, com seus delicados acordes de piano\violino\flauta, sublinha as emoções dos seus personagens com muita verdade, Histórias de um Casamento é um triunfo do cinema moderno. Embora ambientado num geralmente disfuncional mundo de vaidades, o longa humaniza os conflitos dos seus personagens ao pintar um retrato compreensivo e ao mesmo tempo urbano sobre um casal falho disposto a tudo para lutar pela única coisa que eles não estão dispostos a abrir mão: o seu filho. Um relato intimista capaz de comprovar que, diante de um processo tão desnorteante, ninguém está imune ao erro. Um filme denso, triste, real e necessário.

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