domingo, 22 de dezembro de 2019

Dez produções no catálogo da Amazon Prime Video que não merecem passar despercebidas


É fácil dizer que hoje a Amazon tem um catálogo de filmes e séries tão qualificado quanto o da Netflix. Após algum tempo correndo atrás, a gigantesca corporação tem conseguido um grande aproveitamento no que diz respeito a produção\distribuição de conteúdo via ‘streaming’, se tornando uma janela para obras de respeito. Enquanto a Netflix, disposta a andar com as suas próprias pernas, tem investido pesado em grandes nomes (Martin Scorsese, Alfonso Cuarón, David Fincher) e na variedade de títulos, a Amazon tem apostado num conteúdo mais autoral, mais independente. Basta uma rápida olhada no catálogo da companhia para percebermos o alto número de elogiadas produções recentes que passaram quase que despercebidas pelas salas de cinema. Sim, ao contrário da Netflix, a Amazon Studios ainda lança os seus projetos na tela grande. Neste artigo, portanto, decidi analisar alguns destes projetos numa lista com dez filmes que não mereciam cair no esquecimento. 

- Vingança A Sangue Frio (2019)


Remake do elogiado thriller sueco O Cidadão do Ano (2014), Vingança a Sangue Frio é corajoso ao se manter fiel ao curioso tom do original. Dirigido por Hans Petter Moland, também responsável pela versão nórdica, o longa subverte os clichês dos filmes de ação com humor mordaz e um banal senso de brutalidade. Ao contrário do que geralmente costuma acontecer nestes casos, o realizador norueguês ganhou a liberdade necessária para replicar o melhor do material fonte, principalmente a capacidade do texto em rir das convenções do gênero. Não existe espaço para sentimentos positivos aqui. Fazendo jus aos perversos sentimentos que ditam o rumo da trama, Moland torna tudo o mais vil, o mais venal possível. Uma obra movida pela raiva, pela ambição, pela cegueira causada pelo poder. Como se não bastasse o constante flerte com a comédia de erros, o que remete diretamente aos filmes dos Irmãos Coen, o longa é criativo ao explorar o ‘star power’ de Liam Neeson com indiscutível particularidade. Embora o filme perca força no terço final, justamente quando decide abraçar a ação de forma mais “tradicional”, é legal ver como o ator renega o arquétipo heroico que ajudou a construir ao aceitar ser um mero peão dentro da trama. Moland esbanja perspicácia ao gradativamente quebrar as expectativas do público. Mais do que simplesmente não romantizar a vingança do protagonista, um pai disposto a desafiar um perigoso cartel após a morte do seu filho, o diretor é inteligente ao torná-lo um coadjuvante da sua própria história. Não existe espaço para “exércitos de um homem só aqui”. Nem tão pouco para momentos edificantes. O que fica bem claro, em especial, na inusitada relação de “amizade” entre o personagem de Neeson e o precoce filho do mafioso vivido com uma deliciosa afetação por Tom Bateman. Com um expressivo elenco de apoio, Laura Dern, por sinal, é absolutamente subaproveitada, Vingança a Sangue Frio renega os clichês ao não se levar tão a sério como a maioria dos títulos do gênero na atualidade. O que, diante do tom jocoso da produção, faz todo o sentido.
- Obsessão (2019)


Quem disse que uma mesma história não pode ser contada várias vezes? No papel, Obsessão pode até se revelar o tipo de produção que nasce uma sensação de já vi isso antes. Bastam alguns poucos minutos de projeção, entretanto, para percebermos que estamos diante de uma obra com algo a acrescentar. Conduzido com elegância pelo talentoso diretor Neil Jordan (Entrevista com Vampiro), o longa se apropria de um ‘plot’ requentado com sofisticação, conseguindo angustiar sem sacrificar a beleza estética num thriller com uma forte veia clássica. Um jogo de gato e rato instigante que, graças a assinatura perspicaz do cineasta, combinada com as soberbas performances de Isabelle Huppert e Chloe Grace Moretz, compensa a previsibilidade narrativa com estilo, tensão e refinamento. Bebendo da fonte de Alfred Hitchcock, do ‘hagsploitation’ e (claro!) do magnífico Misery (1990), Obsessão é facilmente um dos filmes mais subestimados de 2019. Uma produção elegante, com requintes de crueldade, capaz de revigorar uma premissa saturada com autenticidade e um charme próprio. Não fale com estranhos...

- Espírito Jovem (2019)


Não é incomum ver obras com temáticas semelhantes lançadas num curto prazo de tempo. Os populares filmes gêmeos. Quer entender este fenômeno? É simples. Um grande estúdio anuncia a produção de um longa sobre uma estrela da música. A informação se espalha rapidamente pelos "corredores" de Hollywood. Outros produtores recebem\resgatam scripts com ‘plots’ parecidos. Seja na tentativa de competir com a concorrência, seja para surfar na onda de um potencial grande ‘hit’. Basicamente é isso. Recentemente, por exemplo, vimos isto acontecer com o remake de Nasce Uma Estrela (2018). Com Lady Gaga na pele de uma jovem cantora descoberta por um astro decadente, o longa dirigido por Bradley Cooper nasceu cercado de expectativas. Um frisson que, coincidentemente ou não, gerou três “irmãozinhos”. Em Vox Lux, Natalie Portman encara uma cantora pop midiática obrigada a conviver com os traumas da sua infância. Já em Her Smell, Elisabeth Moss vive uma estrela punk autodestrutiva em busca da inspiração perdida com o vício. Destes, porém, o que mais se assemelha a ‘vibe’ Nasce Uma Estrela é o competente Espírito Jovem. Escrito e comandado pelo ator Max Minghella (A Rede Social), o longa estrelado pela versátil Elle Fanning toca em questões reconhecíveis ao refletir sobre o impacto do sucesso na rotina\identidade de uma jovem cantora do interior. Usando o competitivo universo do ‘reality show’ como pano de fundo, o estreante é habilidoso ao traduzir o choque de realidade sob a óptica de uma introspectiva adolescente, contornando a eventual superficialidade do texto com pulso narrativo, uma genuína aura ‘teen’ e muito estilo.

- A Rota Selvagem (2018)


Incapaz de se render aos melodramas, vide o contido e comovente clímax, A Rota Selvagem causa um impacto singular ao tratar a jornada de amadurecimento de um jovem como um processo efêmero e extremamente duro. Por mais que o longa flerte esporadicamente com algumas soluções convenientes, Andrew Haigh é cuidadoso romper com a geralmente linear narrativa dos ‘coming of age movies’, expondo a realidade como ela é ao narrar as desventuras emocionais de um garoto aparentemente maduro que cansou de perder aquilo que amava. Um filme que, embora recheado de predicados estéticos e narrativos, envolve ao valorizar a imprevisibilidade do mundo em que vivemos, testando as nossas expectativas ao nem sempre entregar aquilo que o argumento parecia sugerir.

- Anos 90 (2018)


Estreia do ator Jonah Hill na direção, Anos 90 é um filme importante. Numa época em que Hollywood anda tão seduzida pela estética escapista nostálgica da década de 1980, a estrela de Superbad: É Hoje (2007) invade uma realidade pouco revisitada num ‘coming of age movie’ honesto e extremamente reconhecível. Indo muito além do visual noventista proposto, que salta aos olhos graças ao enquadramento 4:3 e os efeitos de “envelhecimento” da imagem, Hill nos brinda com uma experiência cinematográfica espontânea, um retrato íntimo, realista e comovente sobre as agruras de uma geração disfuncional em busca de um nicho para chamar de seu. Por trás dos estereótipos e do aparente vazio existem garotos com conflitos sólidos, moldados pelo ambiente que os cercam, dispostos a construir nas ruas laços que lhe eram carentes nos seus respectivos núcleos familiares. Uma busca ao mesmo tempo perigosa e reveladora que guia a jornada dos erráticos protagonistas. 

- Ponto Cego (2018)


Herdeiro natural de títulos do porte de Faça a Coisa Certa (1989), Os Donos da Rua (1991), Fruitvale Station (2013) e o recente Corra! (2017), Ponto Cego é o tipo de soco no estômago cinematográfico que ora e vez nós merecemos levar. Embora o longa parta de uma premissa recorrente na atualidade, a violência policial contra os negros norte-americanos, a comédia dramática dirigida pelo novato Carlos Lopez Estrada surpreende ao não ficar presa no ato em si. Um ataque covarde e naturalmente trágico que, ao ser tratado como algo rotineiro na rotina dos personagens, surge apenas como um agente catalisador da história. Como mais um pesadelo no dia a dia daqueles que se acostumaram a lidar com isso. Usando o rap, a descolada montagem, o visual estiloso e o seu corajoso senso de humor como um diferencial, o cineasta entrega um drama social pesado, um filme pequeno e ao mesmo tempo eloquente capaz de escancarar a barreira que separa aqueles que defendem a multirracialidade e aqueles que realmente vivem a multirracialidade. Uma obra que, através de cenas fortes e por vezes desconcertantes, só constata o quão tolos são aqueles que defendem que o racismo não existe mais. 

- Todos Já Sabem (2018)


O melhor thriller de sequestro desde Os Suspeitos (2013), Todos Já Sabem é o tipo de produção que entrega bem mais do que dela se espera. Reconhecido mundialmente pela complexidade dos seus filmes, Asghard Fahardi (O Apartamento, A Separação) opta por se distanciar gradativamente do viés ‘whodunnit’ ao transformar o desparecimento de uma adolescente no agente catalisador para a construção de um duelo de classes dentro de um núcleo familiar. Com um elenco de primeira em mãos, Javier Bardem, Penelope Cruz, Ricardo Darin e Bárbara Lennie enchem a tela de intensidade, o cineasta iraniano capricha no drama ao construir um ‘plot’ que não precisa se sustentar no clima de mistério. Muito pelo contrário. O sumiço desencadeia dúvidas, velhas feridas, rixas históricas, conflitos bem íntimos. Nas entrelinhas Fahardi é inteligente ao usar os seus profundos personagens para refletir sobre a desigualdade, a decadência da “nobreza” local, o desprezo da elite, os efeitos da crise econômica. Tudo conspira não só para o desenvolvimento do drama, mas principalmente para a construção do clima de desconfiança. As dúvidas, aqui, recaem sobre os personagens com naturalidade. As feridas são reais e reconhecíveis. Como de costume na sua filmografia, aliás, Fahardi convida o público a participar da investigação, nos oferece o bastante para que possamos criar\desfazer suspeitas, se concentrando nas motivações ao tornar tudo sempre muito plausível. Em nenhum momento o diretor joga sujo com o público. O resultado é um clímax realisticamente sucinto, um desfecho sóbrio com a assinatura de um cineasta com um forte senso de consequência. No fim, o sequestro está longe de ser o principal problema desta família.

- Querido Menino (2019)


Implacável ao invadir a devastadora rotina de uma família de um dependente químico, Querido Menino é o tipo de soco no estômago necessário. Consciente da importância do tema proposto, o inquieto diretor Felix Van Groeningen (Alabama Monroe) escancara uma realidade tantas vezes exposta numa obra intimista e profunda. Um filme com muito a dizer sobre o fardo da culpa no tortuoso processo de recuperação. Sob um ponto de vista assustadoramente reconhecível, o cineasta dinamarquês não titubeia em imprimir em tela os altos e baixos de um jovem viciado, criando um choque natural ao fazer dos contrastes a sua principal arma. Um retrato sem filtros sobre o estrago causado pela dependência não só no aspecto físico, mas principalmente no emocional. Um retrato sensível interpretado com enorme respeito por Timothée Chalamet. Com feições quase angelicais, o ator é habilidoso ao tornar o processo de degradação do seu Nic o mais realístico possível.

- A Morte de Stalin (2018)


Poucas coisas devem ser tão gratificantes para um comediante quanto a oportunidade de rir de um tirano. Como Chaplin fez lá atrás com o Grande Ditador (1945), ou Kubrick com Drº Fantástico (1964). O humor transformado em uma ridicularizadora ferramenta de justiça. Uma faceta corajosa da comédia explorada com maestria no absurdo A Morte de Stalin. Com uma visão muito particular (e pasmem verossímil) sobre os fatos, o diretor Armando Iannuci (da série Veep) decidiu investigar as últimas horas do violento ditador Joseph Stalin sob uma óptica implacavelmente tragicômica. O resultado é uma sátira carregada de cinismo sobre os bastidores de um processo que ajudou a definir os homens que iriam tocar o rumo da URSS após a morte do seu grande líder. Com um elenco magnífico em mãos, Steve Buscemi, Jeffrey Tambor, Simon Russell Beale, Michael Palin e Jason Isaacs capturam com vitalidade o tom irônico da produção, Iannuci esbanja perspicácia ao debochar do poder sem nunca (e de forma alguma) diminuir o estrago causado por ele. O texto reflete o misto de subserviência, medo, ambição, covardia, estupidez e perversidade deste “seleto” grupo de políticos de forma absolutamente impagável. Em sua primeira metade, o cineasta abraça a sátira com gosto ao especular sobre a reação destes pedantes séquitos a repentina morte do seu líder, nos presenteando com sequências dignas de gargalhadas. À medida que a trama avança, no entanto, Iannuci não foge da raia ao atestas que estamos diante de homens nada inofensivos. Por trás das gags existe um doloroso fundo de verdade. Na transição para o último ato, inclusive, o senso de comicidade da sátira se esvai em prol de um ardiloso jogo em busca do poder, comprovando a capacidade da obra em escancarar a realidade da União Soviética naquele período e o rastro de sangue deixado por Stalin e os seus homens de confiança. Incisivo ao rir da face mais nociva de um violento regime ditatorial, A Morte de Stalin coloca os pingos nos is ao banalizar a imagem daqueles que durante muito tempo fizeram da violência e da opressão o seu modelo de governança.

- A Pé ele Não vai Longe (2018)


O blockbuster francês Intocáveis (2011) é realmente um belo filme. Quem leu a autobiografia que originou este popular filme, porém, sabe que muito da dor e do desespero experimentada pelo protagonista foi omitida na adaptação. Um misto de sentimentos que fica bem mais claro no intenso A Pé Ele Não Vai Longe. Inspirado na vida do cartunista John Calaham, o longa dirigido por Gus Van Sant troca o elemento ‘feel good’ pela realidade ao pintar um retrato verossímil sobre a dura rotina de um deficiente físico. Por mais que o viés edificante seja claro, o experiente realizador troca as lágrimas fáceis pelo intimismo ao investigar a psique de um homem primeiro quebrado pelo alcoolismo, depois por um devastador acidente. Entre idas e vindas, Van Sant esbanja propriedade ao se debruçar sobre um relato reconhecível, valorizando as grandes derrotas e as pequenas vitórias no processo sem nunca deixar de salientar o esforço do protagonista em recuperar o controle sobre a sua própria vida. Embora o roteiro escorregue no terreno do sentimentalismo aqui ou ali, principalmente quando o assunto é o impacto do abandono materno na identidade de John, Joaquin Phoenix compensa tudo isso com uma performance maiúscula. É fácil identificar a dor do personagem, a tristeza, o desespero, a fragilidade, o caos que o cerca, assim como a sua esperança, franqueza, ingenuidade, alegria e senso de humor. Tudo é muito genuíno aqui. Nós sofremos com ele, nós tememos por ele, nós nos inspiramos com ele. Uma qualidade, verdade seja dita, valorizada por todo o elenco, em especial pelo igualmente expressivo Jonah Hill. Os diálogos entre o alcoólatra e o seu excêntrico tutor refletem não só a profundidade do longa, mas principalmente o esmero de Gus Van Sant em capturar minuciosamente os bastidores de uma árdua jornada. Com uma montagem esperta, A Pé Ele Não Vai Longe encontra um bem-vindo meio termo entre o realismo e o edificante ao mostrar que algumas batalhas são perfeitamente evitáveis. Portanto não se arrisque nelas se possível.

Nenhum comentário: