Naoufel perdeu a sua mão num acidente. Mas ela está disposta a tudo para
reencontrar o seu “dono”. Com base nesta inusitada premissa, Perdi Meu Corpo
causa um misto de fascínio e estranhamento ao investigar as desventuras de um
jovem às avessas com o seu passado. Por mais que a veia absurda salte aos
olhos, o delicado longa dirigido por Jérémy Clapin preza pela realidade ao
propor um denso e intimista estudo de personagem. Recebido com entusiasmo no
Festival de Cannes, o que levou a Netflix a adquirir os seus direitos de
distribuição no mundo, o exótico drama vai bem além da sua peculiaridade ao olhar
para o passado com autenticidade. Estamos diante de um filme sobre –
literalmente – feridas não cicatrizadas.
Roteirista de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, Guillaume Laurant
esconde na excentricidade do seu argumento uma trama sobre traumas, a dor da
perda, a nossa relação com as memórias e a luta por uma pretensa sensação de
controle. Fazendo um brilhante uso da narrativa não linear, Jérémy Clapin
costura o passado e o presente a partir da jornada de uma mão pelas ruas da França.
Assim como ela (a mão), nós somos guiados pelas referências. Guiados pelos
sentimentos deles. O cineasta é criativo ao enxergar o todo a partir da
perspectiva de uma pequena parte de Naoufel. Nos flashbacks sobre a infância, em
especial, o longa por vezes valoriza bem mais a atmosfera do que os fatos. A
sensação. Com isso, além de proteger os segredos em torno do protagonista,
Clapin evita entregar tudo mastigado ao público. É difícil colocar uma pedra no
passado. O destino as vezes insiste em seguir pregando peças. Consciente disso,
Clapin faz certo ao não simplificar as coisas.
Com um inteligente ar contemplativo, Perdi Meu Corpo transita entre o
drama e o romance com elegância, conseguindo investigar os conflitos de Naoufel
com profundidade, metáforas inteligentes e ao mesmo tempo leveza. Os diálogos
são sólidos. A relação entre os personagens comovente. Os símbolos refletem a
imaturidade, os anseios, os conflitos, a quebra de expectativas. Muito mais do
que interesse romântico, por exemplo, Gabrielle surge como um símbolo de
esperança. Uma luz no fim de um melancólico túnel. Algo capaz de tirar Naoufel
da inércia. Assim como a sua mão, ele também passou parte do seu tempo perdido.
À mercê da sorte. Tratando o seu destino como uma mosca indomável. Quanto mais
ele tenta dominá-la, mas ele se complica. Mais ele perde. Entre as idas e
vindas do roteiro, Jérémy Clapin é astuto ao traçar um paralelo entre eles.
Ambos, à sua maneira, querem alcançar algo, querem se reconectar com algo
perdido, querem assumir as rédeas da sua existência. Eles querem viver e não
sobreviver. O caminho, porém, é tênue e por vezes tortuoso. Os obstáculos são
duros, íntimos, devastadores. A veia lúdica\sensível da película se esvai à
medida que Clapin decide responder algumas perguntas da forma mais angustiante
possível. O longa não titubeia em tornar tudo pesado o bastante. Visualmente e
tematicamente. Perdi Meu Corpo é também um filme inesperadamente tenso. Do tipo
que nos faz fechar os olhos na iminência de algo mais gráfico. Que captura a solidão
e o desespero com realismo. Que sugere alternativas naturalmente
desconcertantes.
Muito em função, é verdade, dos expressivos traços da animação. Com um
2-D estilizado, Jérémy Clapin flerta com a linguagem da rotoscopia ao mirar o
realismo em detrimento do cartunesco. Ele se preocupa com os mínimos detalhes
ao traduzir a atmosfera urbana da obra. As cores vivas não mascaram o teor
sujo, a sensação de perigo iminente. Algo que fica bem claro, por sinal, quando
o longa segue os passos (ou seria dedilhar) da mão. No melhor estilo Toy Story,
o diretor dá uma aula quando o assunto é a noção de escala e o senso de
profundidade, o que só potencializa o clima de incerteza quanto ao destino
desta vulnerável parte do corpo. Clapin é astuto ao tratá-la quase que como um
inseto, sempre com um olhar atento envolvendo as ameaças que as cercam. O mundo
fica ainda mais ameaçador quando olhado de baixo para cima. A sequência da fuga
no metrô, por sinal, é enervante, valorizada pelo impactante desenho do som. Somado
a isso, ele potencializa a nossa sensação de angústia ao “brincar” com o
elemento vertiginoso, causando arrepios sempre que os seus personagens se
posicionam perto de lugares íngremes. Vide o desconcertante clímax.
Uma experiência sensorial única, Perdi Meu Corpo combina virtuosismo
estético e narrativo para entender a dor de um garoto que desde cedo se acostumou
a perder. Um drama intenso e moderno que, seguindo a tradição francesa de tirar
do papel pequenas grandes obras (As Biciciletas de Belleville e O Mágico), se
apropria do elemento lúdico da animação com autenticidade, peso e um precioso ar
poético.
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