quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Especial | Quinze grandes filmes sobre problemas raciais que todo mundo deveria assistir


Vivemos tempos difíceis. De retrocesso. De validação de alguns perigosos discursos. Alguns deles de cunho extremamente preconceituoso. Pior do que as manifestações de ódio individual, entretanto, é o racismo institucional. O racismo que mata sem pedir identidade. O racismo que segrega. Que causa desigualdade. Que rouba a dignidade de pessoas que, como eu ou você, só querem prosperar. O racismo que parte daqueles que deveriam proteger a todos os cidadãos de maneira igualitária e justa. Neste Dia da Consciência Negra, nada mais justo do que usar o cinema para refletir sobre alguns destes enraizados problemas sociais. O racismo existe no Brasil e no mundo. E o cinema está aí para provar. Nesta lista, portanto, uma seleção com quinze filmes sobre questões raciais indispensáveis que todo mundo deveria assistir. Para fugir da obviedade, porém, decidi me distanciar dos longas históricos (12 Anos de Escravidão, O Mordomo da Casa Branca), dos biográficos (Selma, Malcom X, Marshall: Justiça e Liberdade) e dos grandes sucessos (Moonlight, Histórias Cruzadas). E melhor. Uma formada em sua maioria por obras dirigidas por realizadores negros, o que reforça o viés representativo dos títulos em análise. Dito isso, começamos com... 


- Rio, Zona Norte (1957)


E nada melhor do que abrir esta lista com um poderoso representante do cinema nacional. Sob a realista batuta de Nelson Pereira dos Santos, Rio, Zona Norte (1957) escancara como pouca coisa mudou desde então na rotina de uma comunidade do Rio de Janeiro. Subvertendo elementos das populares chanchadas, o engajado realizador renega o tradicional otimismo do subgênero ao narrar a jornada de um compositor de sambas em busca do seu lugar ao sol. No embalo da estupenda performance de Grande Otelo, que, num dos trabalhos mais densos da sua carreira, reforça a desconcertante carga dramática desta crônica social, Nelson Pereira dos Santos invade uma realidade ainda hoje reconhecível numa trama crítica, narrativamente envolvente, com personagens tridimensionais e uma visão de mundo muito própria. Espírito, o protagonista, simboliza o homem negro que acredita, que corre atrás do seu, que luta por dignidade, que briga constantemente contra um sistema seletivo, injusto e preconceituoso. Ao longo da sua árdua luta, porém, a triste realidade anda de braços dados com as suas belas canções. O que vemos são obstáculos reconhecíveis. Espírito é enganado, é agredido, é vítima de um círculo vicioso que mata, furta e condena muitos à sua própria sorte. Um homem cansado de esperar o amanhã, mas disposto a encarar a sua realidade da forma mais poética possível. Um retrato social incômodo e necessário, Rio, Zona Norte é um Nasce Uma Estrela às avessas. Uma obra sobre sonhos roubados, sobre o estrago causado pela desigualdade e a triste rotina daqueles que vivem à margem da oportunidade.

- Adivinhe Quem Vem para o Jantar (1967)


Com alguns dos diálogos mais poderosos sobre uma relação interracial num ambiente preconceituoso, Adivinhe Quem Vem para o Jantar é uma obra muito à frente do seu tempo. Stanley Kramer nos brinda com um retrato complexo sobre um tema espinhoso, uma história de amor em tempos de ignorância, segregação e as mais perigosas sequelas do racismo. Com Sidney Poitier e Katharine Houghton na pele de um casal disposto a convencer os seus pais a aceitarem a sua relação, o longa impacta ao investigar o preconceito sob a perspectiva de personagens não preconceituosos. Tanto a família branca, quanto a família negra compartilham de medos semelhantes. Enquanto o polido casal vivido por Spencer Tracy e Katherine Hepburn temiam pela vulnerabilidade da sua querida filha num casamento inter-racial, o humilde casal vivido por Roy Glenn e Beah Richards se recusavam a desafiar um sistema que sempre castigou os seus. Sem nunca julgar\condenar os seus personagens, Kramer vai muito além da questão do preconceito velado ao se concentrar nos tabus raciais que ditavam as regras em grande parte dos EUA. Mesmo ambientado quase sempre num único cenário, a luxuosa casa da família branca, o realizador esbanja dinamismo ao, a partir das preocupações de ambos os pais, revelar um pouco da realidade enfrentada por muitos numa América ainda segregada. No fim, o recado é claro e otimista. Acreditando na força dos movimentos raciais e nas mudanças que estavam por vir, Adivinha Quem Vem para o Jantar se encerra com um monólogo categórico ao se insurgir contra o ódio e a ignorância. Spencer Tracy, com a força que o tema pedia, diz tudo aquilo que grande parte dos cidadãos americanos precisava ouvir, propondo uma amorosa e inspiradora mensagem igualitária. Um desfecho poderoso, corajoso e indiscutivelmente memorável. A cereja no bolo de uma produção que acredita no peso do seu texto e na franqueza dos seus ricos personagens.

- Faça a Coisa Certa (1989)


Uma verdadeira crônica sobre a realidade negra no Brooklyn na década de 1980, Faça a Coisa Certa é a obra prima do diretor Spike Lee. Reconhecido pela sua forte veia crítica e por defender a cultura negra nas suas produções, o diretor esbanja energia ao revelar a faceta mais ignorante por trás do preconceito. Com personagens singulares, uma atmosfera propositalmente quente e um visual genuinamente vigoroso, Lee revela não só a musicalidade, as referências culturais e o modo de vida de uma região majoritariamente negra, como também escancara as tensões raciais presentes neste ambiente. Através da rixa entre o zeloso dono de uma pizzaria, o boa praça Sal (Danny Aiello), e um determinado fã de Rap, o popular Radio Raheem (Bill Nunn), o realizador expõe os perigos por trás dos conflitos inter-raciais. Sem escolher lados, Lee é incisivo ao reproduzir a irracionalidade, o desrespeito e as repentinas trocas de farpas entre negros e brancos, dando ao longa um ritmo crescente e naturalmente nervoso. Além disso, como se não bastasse o virtuosismo estético do realizador, vide a colorida palheta de cores e os inventivos movimentos de câmera, Faça a Coisa Certa envolve ao construir um 'mise en scene' recheado de ritmo, uma obra insinuante capaz de revelar o melhor e o pior do ser humano. Indiscutivelmente, um filme definitivo e completamente atual sobre os conflitos raciais em solo norte-americano.

- Os Donos da Rua (1991)


Todo mundo que acredita\defende pura e simplesmente no conceito da meritocracia precisa necessariamente assistir a Os Donos Da Rua. Lá nos anos 1990, quando alguns (poucos) realizadores negros conseguiram se fazer ouvir em Hollywood, John Singleton escancarou a face mais vil de uma América desigual ao narrar as desventuras de um grupo de amigos dispostos a fazer o que for preciso para prosperarem. Com personagens humanos, um contexto extremamente reconhecível e um argumento consciente das injustiças acontecidas nas regiões “esquecidas” pelo poder público, Singleton testa as nossas expectativas ao revelar o quão tênue pode ser a linha entre o certo e o errado num ambiente marginalizado. Numa realidade em que o tráfico de drogas e o crime organizado surgiam como uma das poucas alternativas de vida para muito, o longa é enfático ao desmistificar, em especial, o conceito da meritocracia. O grande trunfo de Os Donos da Rua, na verdade, está no cuidado do argumento em romper com os estereótipos até então associados aos moradores das regiões mais pobres. Naquele bairro existia o jovem que queria ascender através do esporte, o que acreditava no poder do estudo e também o que viu no crime a única alternativa possível. Com um elenco recheado de nomes que viriam a se tornar estrelas, entre eles Cuba Gooding Jr. e Laurence Fishburne, Singleton investiga a realidade deste heterogêneo grupo de jovens sem filtros, sem meias-palavras. Quanto mais eles lutavam para conseguir algo pelos meios considerados certos, mais eles encontravam obstáculos. No fim, fazendo jus ao viés crítico proposto por esta verdadeira crônica urbana, Os Donos da Rua não titubeia em jogar a verdade na cara do público. Não existe espaço para a meritocracia num ambiente abandonado pelo Estado. Num cenário em que nível de escolaridade é considerado algo supérfluo. Uma realidade, infelizmente, ainda hoje muito reconhecível nos grandes centros urbanos ao redor do mundo.

- Fruitivale Station (2013)


Ver Fruitvale Station no cinema foi uma experiência difícil. Na minha crítica, postada durante uma edição do Festival do Rio, lembro de ter comentado sobre o silêncio fúnebre que tomou conta da sessão com o subir dos créditos finais. Uma reação muito forte que, a meu ver, sintetiza o clima da obra de um então promissor diretor Ryan Coogler. Inspirado numa devastadora história real, o longa estrelado por Michael B. Jordan choca ao narrar as últimas horas de vida de um jovem homem vítima de violência policial. Ali, independentemente da veracidade dos fatos, o que o longa faz é revelar o impacto do racismo em sua face mais agressiva. Logo na desconcertante primeira cena, um vídeo amador do momento em que um policial ataca ferozmente um homem indefeso, Coogler é enfático ao preparar o espectador para o que estava por vir. Uma realidade reconhecível seja aos olhos dos moradores de uma metrópole como Nova Iorque, seja sob a perspectiva de um morador de uma comunidade do estado do Rio do Janeiro. O Oscar Grant vivido por Michael B. Jordan é apenas mais uma vítima de um sistema desigual. Disposto a se redimir após um período na prisão, ele esbarra na farsa da ressocialização, na falta de oportunidades, na desconfiança geral e óbvio na violência urbana enfrentada no dia a dia por muitos. Um filme urgente, principalmente por mostrar as sequelas causadas pelo racismo institucionalizado, o racismo que oprime, que mata, que destrói vidas inocentes sob a chancela do Estado.

- Sonhos Imperiais (2014)


Imagine uma versão do comovente A Procura da Felicidade (2006) só que na realidade nua e crua da periferia dos EUA. Esta é a proposta de Sonhos Imperiais, um pequeno grande filme sobre a luta de um ex-presidiário contra o círculo vicioso do mundo do crime. Ao longo das enxutas 1 h e 25 min de duração, o promissor diretor Malik Vitthal dá uma ruidosa voz a uma camada da sociedade frequentemente esnobada em Hollywood. Sob uma perspectiva realística e questionadora, o longa esbanja propriedade ao narrar a jornada de Bambi, um jovem criado na marginalidade que, após um período preso, decide desafiar este ‘status quo’ e se dedicar a criação do seu pequeno filho. Num relato comovente, Vitthal rompe com o maniqueísmo ao mostrar a violência e a criminalidade como a principal sequela da desigualdade. Embora se apresse em alguns momentos, subaproveitando arcos e personagens marcantes, o argumento assinado por Ismet Prcic é incisivo ao mostrar a desoladora rotina de um jovem em busca de uma nova chance, refletindo sobre o desdém social ao criar um personagem encurralado. De um lado temos o tentador (e perigoso) mundo do crime. Do outro a escassez de oportunidades impostas por um sistema hipócrita e nada amistoso. Com diálogos densos, personagens multidimensionais e uma abordagem realista, Vitthal surpreende ao, em meio a um cenário tão cruel, tratar a literatura como uma espécie de refúgio. Fazendo um singular uso do ‘voiceover’, os textos de Bambi se revelam uma poderosa crônica sobre o cenário que o cerca, uma visão de alguém que verdadeiramente viveu aquilo bem de perto. Um sentimento potencializado pela sólida performance de John Boyega. Reconhecido pela sua intensidade, o ator britânico é daqueles que traz a verdade no seu olhar, imprimindo em cada frame o misto de esperança, resiliência e raiva que ditam o rumo do seu personagem. Na pele de um jovem talentoso, Boyega opta pelo comedimento ao capturar as nuances do seu Bambi, ao mostrar a dura rotina de um ex-presidiário obrigado a andar na corda bamba, se tornando a alma de uma obra que tem muito a dizer. Contando ainda com uma expressiva fotografia noturna e planos íntimos recheados de sentimentos, Sonhos Imperiais extrai a arte por trás de uma dura realidade ao traduzir com rara beleza uma verdade infelizmente universal. Seja num gueto norte-americano, seja numa favela brasileira.

- Cara Gente Branca (2014)


Com uma anárquica dose de cinismo, Cara Gente Branca é o tipo de obra que não parece interessada em fazer “amigos”. Com base nos inúmeros e abomináveis casos de festas com um forte teor racista em campus de respeitadas universidades norte-americanas, o estiloso longa dirigido por Justin Simien coloca o dedo em inúmeras feridas ao expor o preconceito em sua face mais velada e dissimulada. Com a sempre radiante Tessa Thompson na pele de uma jovem (e ferina) universitária alçada a líder do movimento negro num ambiente dominado majoritariamente por brancos, o realizador esbanja criatividade ao tratar o racismo nos seus mais diversos níveis. A partir do choque interracial proposto pela trama, Simien é categórico ao discutir a questão da apropriação cultural, a falta de representatividade, a descaracterização do discurso daqueles que lutam por igualdade. Com comentários ácidos e um tanto quanto premonitórios, o diretor é astuto ao mostrar a farsa escondida no discurso integrador, ao escancarar as intenções escusas, ao defender o preconceito na fala daqueles que refutam a existência do racismo, que taxam manifestantes de vitimistas. Ou pior, extremistas. E isso sem passar a mão na cabeça de ninguém. Todos têm a aprender sobre o tema aqui. Embora, de maneira sucinta e categórica, Simien refute por completo o estapafúrdio conceito do “racismo inverso”, é legal ver como o longa dirigido por um realizador negro (o que só confere ainda mais peso ao discurso) questiona também a maneira com que os próprios negros se enxergam dentro desta sociedade. Com um texto aguçado e recheado de referências pop, o filme se insurge contra a manutenção de velhos estereótipos, contra a incapacidade de muitos em renegar os arquétipos alimentados ao longo de décadas pela sociedade americana. No fim, maniqueísmos e precipitações narrativas a parte, Cara Gente Grande se revela uma crônica implacável sobre uma sociedade que, em muitos setores, ainda cultiva um maquiado processo de miscigenação. Uma dinâmica frágil, tênue, que mais parece interessada em calar do que em dar voz. E ai daqueles que queiram se fazer ouvir.

- Dope (2015)


Questionador, indomável e aventureiro, Dope foge do lugar comum ao esmiuçar (e contestar) os estereótipos raciais enraizados na sociedade norte-americana. Numa inusitada mistura de gêneros, o afiado longa dirigido por Rick Famuyiwa (Nossa União, Muita Confusão) arranca inúmeras gargalhadas ao flertar tanto com a leveza oitentista dos clássicos juvenis de John Hughes, quanto com o engajamento social de realizadores mais viscerais como John Singleton e Spike Lee. Embalado por uma incrível trilha sonora, recheada de hits do Hip-Hop, o perspicaz argumento renega através das desventuras de três jovens de classe média\baixa os clichês sociais impostos pela desigualdade e pela falta de perspectiva. Um relato "moleque", mas absolutamente realístico que não só traduz com extremo bom humor alguns dos mais universais anseios da juventude, como também deixa uma poderosa mensagem de luta contra o sistema. Seguindo a linha Os Donos da Rua, mas sob uma perspectiva autoafirmativa, Dope fascina ao revelar a luta de três jovens de origem humilde dispostos a conseguir algo que lhes pertencia pela forma com que eles julgavam certa. Interpretado por Shameik Moore, o jovem protagonista queria chegar a Harvard, mesmo oriundo do sistema público de educação. Embora a pegada aventuresca confira uma aura leve\irônica a trama, Famuyiwa é cirúrgico ao se insurgir contra o ‘status quo’ que eles estavam inseridos. E quase duas décadas depois de Os Donos da Rua, é de impressionar como a realidade das minorias pouco mudou nos EUA.

- Corra! (2017)


Confesso que, como um homem branco, é difícil mensurar o quão vil pode ser o impacto do preconceito racial. É complicado falar sobre um tema sem nunca ter sentido na pele, sem nunca ter experimentado tamanha agressão. Até por isso sempre defendo a importância do lugar de fala. De ouvir aqueles que realmente tem algo a dizer sobre um tema delicado. De todos os títulos desta lista, porém, Corra! foi talvez o único longa capaz de realmente nos colocar na pele de um homem negro vítima de racismo. Sob a cínica batuta de Jordan Peele, o longa estrelado por Daniel Kaluya escancara uma realidade esnobada por muitas ao, dentro de um contexto extremo, mostrar o quão pavoroso pode ser a convivência com olhares de estranhamento, com a perseguição, a repressão e o desprezo. O preconceito velado. Ao tratar o seu protagonista quase que como um pedaço de carne, algo que faz todo o sentido diante das revelações propostas pelo roteiro, Peele eleva o grau de conexão entre público e personagem a um nível poucas vezes visto dentro do gênero, nos permitindo, ainda que em doses minúsculas, experimentar a rotina de indignidades enfrentadas por muitos. O resultado aflitivo, constrangedor e genuinamente incomodo. O filme definitivo para refutar àqueles que ainda hoje, diante de todos os fatos e notícias, cismam em defender que não existe racismo em um país como o Brasil.

- Ponto Cego (2018)


Herdeiro natural de títulos do porte de Faça a Coisa Certa (1989), Ponto Cego (Blindspotting, no original) é o tipo de soco no estômago cinematográfico que ora e vez nós merecemos levar. Embora o longa parta de uma premissa recorrente na atualidade, a violência policial contra os negros norte-americanos, a comédia dramática dirigida pelo novato Carlos Lopez Estrada surpreende ao não ficar presa no ato em si. Um ataque covarde e naturalmente trágico que, ao ser tratado como algo rotineiro na rotina dos personagens, surge apenas como um agente catalisador da história. Como mais um pesadelo no dia a dia daqueles que se acostumaram a lidar com isso. Impulsionado pelas soberbas performances da dupla Daveed Digs (da série Black-Ish e do musical Hamilton) e Rafael Casal, o realizador mexicano é enfático ao discorrer sobre a realidade de dois amigos de infância que cresceram em meio a violência, a desigualdade e a marginalidade. Com um afiado senso de ironia, Lopez esbanja astúcia ao trazer a pluralidade étnica para o centro da trama, colocando o dedo na ferida ao mostrar como a questão racial ainda hoje faz uma grande diferença nos grandes centros urbanos. Ao inverter os arquétipos frequentemente utilizados no gênero, o branco é o "gangsta" da vez, Lopez é astuto ao mostrar como, ainda hoje, a cor da pele segue definindo a identidade\índole de algumas pessoas. Sem um pingo de condescendência, o diretor mostra ferocidade ao apontar o dedo para aqueles que não querem ver, mostrando como, mesmo numa sociedade teoricamente multirracial, o preconceito e a desigualdade seguia vitimando pessoas inocentes. E isso sob a perspectiva de um homem comum que, após um episódio traumático, não conseguiu simplesmente "virar a cara" e seguir vivendo. Usando o rap, a descolada montagem, o visual estiloso e o seu corajoso senso de humor como um diferencial, Ponto Cego é drama social pesado, um filme pequeno e ao mesmo tempo eloquente capaz de escancarar a barreira que separa aqueles que defendem a multirracialidade e aqueles que realmente vivem a multirracialidade. Uma obra que, através de cenas fortes e por vezes desconcertantes, só constata o quão tolos são aqueles que defendem que o racismo não existe mais. 

- O Ódio Que Você Semeia (2018)


Logo na sua desconcertante primeira cena, O Ódio Que Você Semeia é incisivo ao jogar na cara do público uma realidade cruel e injusta. Nela um pai de família negro, numa reunião com ares corriqueiros, ensina os seus filhos a se portar caso se depare com uma “batida” policial. A lição não é dada com serenidade. Não! A polícia, aos olhos daquele homem, não simbolizava proteção. Longe disso. Era mais uma ameaça imposta pela desigualdade e pelo racismo. Consciente da urgência temática da sua obra, o diretor George Tillman Jr. (Homens de Honra) é veemente ao refletir sobre a violência policial contra inocentes nos EUA sob uma perspectiva dura, trágica e agressiva. Impecável ao revelar a seletividade do Estado no que diz respeito a construção do estereótipo de possível ameaça, o realizador causa um misto de raiva e tristeza ao narrar a jornada de uma jovem dedicada e educada que desde cedo se acostumou a viver a segregação do nosso dia a dia. Embora pese a mão dentro do carregado clímax e estique a sua obra além do necessário, algumas sequências didáticas e\ou redundantes, inclusive, comprovam a falta de acabamento do longa, George Tillman Jr. entrega um filme categórico, um relato desconcertante sobre a violência policial, o racismo enraizado e as inúmeras sequelas causadas pela desigualdade social.

- Detroit em Rebelião (2018)


Racismo, violência policial, injustiça social, morte de inocentes. Era Detroit, 1967, mas poderia ser Rio de Janeiro, 2019. Detroit em Rebelião choca ao mostrar as sequelas causadas pela repressão sob uma palheta realista. Um filme duro, tenso, dilacerante e atual. Um filme indispensável e infelizmente atual. Dirigido por Kathryn Bigelow, o longa volta a raiz de um reconhecido problema ao acompanhar os passos de um grupo de jovens negros durante uma das ações policias mais violentas dos EUA. Usando o micro para escancarar o macro, a realizador renega o puro maniqueísmo ao expor o racismo institucionalizado. O ódio, aqui, não é o que impulsiona a violência. Bigelow é enfática ao se concentrar na legitimação da agressividade. Não existem limites. Estamos diante de um grupo de homens, representantes do Estado, dispostos a tudo para conseguir justificar o injustificável. Como se não bastasse a crescente carga de tensão, a cineasta é cuidadosa ao nunca generalizar. Existe os bons, os ruins e os péssimos. Mais do que isso, Bigelow é astuta ao realçar o misto de inércia e impotência daqueles que poderiam restabelecer a ordem. Contando com atuações fortíssimas, John Boyega e Will Poulter, em especial, estão soberbos, Detroit em Rebelião usa o passado para repercutir o presente ao se insurgir contra uma rotina que ainda hoje segue ceifando vidas inocentes.

- Se a Rua Beale Falasse (2019)


Vencedor do Oscar de Melhor Filme com Moonlight (2016), o diretor Barry Jenkins se tornou uma das principais vozes do cinema afro-americano na atualidade. Seus projetos recentes levaram a realidade para a tela grande sem abrir mão da sensibilidade. O que, diga-se de passagem, em nada reduz os ecos das suas críticas. Algo que fica bem claro no seu mais recente filme, o elegante Se a Rua Beale Falasse. Mais do que simplesmente colocar o dedo na ferida contra a perversidade de um sistema desigual e racista, Jenkins convida o espectador a refletir sobre o todo ao nos brindar com uma crônica (infelizmente atemporal) sobre a vulnerabilidade do indivíduo negro na sociedade americana. Adaptação da obra homônimo de James Baldwin, Se a Rua Beale Falasse troca o grito de revolta pela serenidade da resiliência ao narrar as desventuras de um jovem casal (Kiky Lane e Stephan James) obrigado a ver o seu promissor futuro ser colocado em cheque diante de uma infundada acusação. Sem a intenção de entregar mais uma obra sobre o falho e tendencioso sistema judiciário dos EUA, Jenkins evoca um misto de afeto e indignação ao invadir a rotina dos apaixonados Tish e Fonny. Graças a sua esperta estrutura não linear, o argumento assinado pelo próprio cineasta é comedido ao expor sob um vistoso filtro cinematográfico a realidade como ela é, sem dispersões e um pingo de condescendência. Se a Rua Beale é, a rigor, um filme sobre o amor (fraterno, materno, matrimonial), a dor e as sequelas causadas pela injustiça. Uma obra sobre os sonhos que não se concretizam, sobre o vazio que abala, que causa medo, insegurança. A magnífica sequência do loft, em especial, é de cortar o coração. Apesar da delicadeza de Jenkins na construção do elo do casal, impressiona a forma com que o realizador, nas entrelinhas, estabelece a vulnerabilidade, a sensação de efemeridade, como se a qualquer momento tudo pudesse ruir. Os diálogos são fortes e incisivos. Os personagens são humanos. A sensação de desconforto é evidente. No fim, embora peque pela falta de ritmo em algumas passagens, um desnível compensado pela refinada assinatura visual do longa, Se a Rua Beale Falasse é enfático ao expor a disfuncionalidade causada pelo círculo vicioso da desigualdade social.

- Infiltrado na Klan (2019)


A era Obama parece ter feito muito mal a verve criativa de Spike Lee. A fera, porém, estava adormecida, não enjaulada. Bastou a balança voltar a desequilibrar, a voz da opressão falar mais alto, para que o realizador retornasse da sua entressafra com o poderoso Infiltrado na Klan. De volta a sua forma mais afiada e questionadora, Lee enfia o dedo na ferida ao se insurgir contra a crescente onda de preconceito nos Estados Unidos da América, buscando no passado a inspiração necessária para construir uma das mais contundentes, cínicas e corajosas críticas políticas já produzidas em Hollywood. Um filme que se orgulha das suas raízes, da sua mensagem, da rica cultura afro-americana e (especialmente) dos feitos de jovens corajosos que - no ápice da intolerância - resistiram contra uma das mais nefastas faces do racismo. Um verdadeiro manifesto contra o ódio e o racismo, Infiltrado na Klan redefine a sua importância ao mostrar que alguns dos fatos impressos no longa estão mais vivos do que poderíamos imaginar. Quando a questionadora obra parecia já ter apresentado todas as suas credenciais, Spike Lee cruza a linha que separa os talentosos dos gênios ao arrematar a trama de maneira avassaladora, interligando passado e presente com uma coragem e um viés crítico raríssimo dentro do showbiz nos dias de hoje.

- A Gente se Vê Ontem (2019)


Os filmes de viagem do tempo são tão populares por provocarem o imaginário do público. E se realmente tivéssemos este poder? Usaríamos para unir os nossos pais como em De Volta para o Futuro (1985)? Para livrar o mundo de uma epidemia como em Os Doze Macacos (1995)? Para caçar um perigoso assassino como em Alta Frequência (2000)? Para evitar um ataque terrorista como em Contra o Tempo (2011)? Ou então para conquistar a mulher que amamos como em Questão de Tempo (2013)? As possibilidades seriam tantas... Mas as consequências também. O que fica bem claro no mais novo e instigante título do gênero, o corajoso A Gente se Vê Ontem. Produzido pelo ícone do cinema afro-americano Spike Lee, o longa dirigido por Stefan Bristol revigora este particular subgênero ao trazê-lo para um contexto bem mais atual e realístico. Inspirado por títulos como Faça a Coisa Certa (1989), Os Donos da Rua (1991) e o recente Dope (2013), a surpreendente produção original Netflix compensa os seus evidentes problemas de tom ao refletir sobre a vulnerável posição de um jovem negro dentro da sociedade norte-americana, escondendo na roupagem aventuresca uma pesada crítica política envolvendo a violência policial e as imutáveis feridas causadas por esta rotineira mazela social. Um filme capaz de entreter e impactar ao escancarar uma desconcertante (e muitas vezes inalterável) rotina.

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