sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Artigo | Porque O Rei Leão é um dos filmes mais decepcionantes de 2019 até aqui


O Rei Leão, o original de 1994, é uma obra que ainda hoje não permite atualização. Tudo nela funciona brilhantemente. O texto, o visual, a estupenda trilha sonora, a riqueza de personagens, a forte carga dramática. Não à toa, o longa dirigido pela dupla Roger Allers e Rob Minkoff é considerado por muitos a peça chave na retomada dos estúdios Disney nos anos 1990. Além disso, estamos diante de uma produção que permanece viva no imaginário do público. Dos mais nostálgicos aos mais novos. O Rei Leão seguiu conquistando audiências. Seja na Broadway, seja em versões 3-D, seja nos serviços de streaming. Simba e sua turma se tornaram verdadeiros ícones do cinema. Dito isso, estava claro que o remake de uma obra tão estimada para o público seria um desafio complexo. Ao contrário de títulos igualmente imponentes, como Mogli: O Menino Lobo, Aladdin e Dumbo, O Rei Leão não oferecia muitas brechas novas interpretações\ressignificações. A coragem estava lá, no original. O drama estava lá, no original. O vigor estético estava lá, no original. Talvez por isso a Disney tenha se prendido tanto ao visual da refilmagem. Com uma tecnologia que sequer sonhava em existir nos anos 1990, os produtores entenderam que a simples transformação do 2-D clássico para o CGI fotorrealístico seria o bastante para tirar do papel esta releitura. Imagem e conteúdo, entretanto, precisam sempre andar de mãos dadas. E o que torna O Rei Leão tão decepcionante é a sua completa incapacidade de enxergar isso. 


Vamos tirar o elefante da sala. O novo O Rei Leão está longe de ser uma bomba. Muito pelo contrário. Sob a virtuosa batuta de Jon Favreau, o remake entregou aquilo que se propôs. Uma atualização visual espetacular. Poucas vezes o CGI fotorrealista foi explorado de forma tão verossímil e impactante quanto aqui. Com absoluta reverência ao material fonte, o cineasta captura a grandiloquência estética do original como o esperado, invadindo a rotina da savana africana com um realismo nível National Geographic. Ao longo das quase duas horas de projeção ficou claro o grau de detalhismo da produção. Favreau presou pelos mínimos detalhes. Pela textura dos pelos. Pelo senso de mobilidade dos animais. Pela engenhosa relação entre a luz e o cenário. Somado a isso, o robusto elenco foi um acerto praticamente inquestionável, a trilha sonora foi “remasterizada” com muito peso e respeito, as sequências de ação se tornaram ainda mais impactantes. Existem claros predicados na ambiciosa refilmagem da Disney. O que era para ser a principal virtude do longa, entretanto, se torna também o seu grande problema quando percebemos o quanto Favreau teve que “sacrificar” na busca pelo fotorrealismo. Vide a triste pouca expressividade dos personagens. Por mais impressionante que seja a adaptação dos personagens para um ambiente pseudo ‘live-action’, o senso de humanidade deles se perdeu na adaptação. Ao renegar a estética catunesca da versão animada, Favreau renegou também parte da natureza dos protagonistas. Simba, Mufasa, Nala, Timão, Scar, Pumba, Zazu se tornaram menos expressivos. O visual lúdico se esvaiu diante das pretensões realistas da obra.



Um pecado potencializado pela incapacidade do novo O Rei Leão em trazer o realismo visual também para o centro da trama. Existe um claro problema de tom aqui. Isso porque o comportamento dos personagens segue cartunesco. Talvez temendo a reação do público em caso de interferência no material fonte, Jon Favreau reduz o impacto do longa ao simplesmente replicar a dinâmica narrativa do original. Não estou dizendo aqui que, para fazer jus à rotina da savana africana, a refilmagem precisaria ser mais violenta, ou cortar personagens\relações importantes. Nada disso. O que falta, na verdade, é maturidade ao lidar com os já estabelecidos conflitos\dilemas de cada um dos personagens. Veja Mogli: O Menino Lobo, por exemplo. Um filme, diga-se de passagem, também dirigido por Favreau. Nele o fotorrealismo vem acompanhado de novos elementos. Embora antropomorfizados, os personagens ganham nuances mais selvagens. O elemento musical é apenas levemente reverenciado. Favreau foi além ao tecer um brilhante comentário sobre o estrago causado pela interferência humana num ambiente selvagem. A “atualização” não ficou reduzida ao visual. Em O Rei Leão, por outro lado, o que vemos é uma refilmagem acuada. Por mais que o diretor até tenha conseguido resolver bem a questão dos números musicais, que, de fato, se encaixaram com naturalidade também no remake, muito do elemento dramático ficou pelo caminho. Sim, a nova versão conseguiu ser mais leve que a versão animada. E os motivos são claros.


Primeiro, como dito acima, a falta de expressividade dos personagens reduziu o efeito deles junto ao público. Enquanto o Simba filhote, até por características próprias, seguiu causando um fascínio natural junto ao público, personagens como o leão Scar, o macaco Rafiki e principalmente o carismático Pumba tiveram parte da sua essência tomada pelo fotorrealismo. Veja o caso de Scar, por exemplo. No original, o ferino tio de Simba era um personagem ardiloso, com um olhar que expressava melancolia, ironia e raiva. A animação conseguiu traduzir com brilhantismo a marcante (e exagerada) performance vocal de Jeremy Irons. Já na nova versão o que vemos é um leão perverso. Simples assim. Apesar do esforço de Chiwetel Ejiofor em trazer um assombroso ar de frieza ao antagonista, o resultado é um tanto quanto maniqueísta. Mufasa é o bem, Scar é o mal e ponto final. Algo que se repete de certa forma com o popular Pumba. Parte da veia cômica da obra perde força quando nos deparamos com a inexpressiva presença estética do porco do mato. Por mais que Seth Rogen consiga contornar esse problema com um primoroso trabalho vocal, me arrisco a dizer um dos pontos mais altos do longa, o Pumba versão CGI não chega nem perto de causar o efeito do Pumba animado. O que fica bem claro, em especial, quando vemos a péssima “solução” encontrada por Favreau para apagar uma das cenas mais icônicas da animação, o Hula protagonizado por Timão e Pumba. Na verdade, o novo O Rei Leão esbarra por diversos momentos neste meio termo. Um filme que, na ânsia de parecer realista sem renegar o traço cartunesco, não consegue ser nem uma coisa, nem outra. Menos mal que, até por ter características mais antropomorfizadas, o Timão de Billy Eichner “salva o dia” ao se tornar, ao lado de ótimo Zazu de John Oliver e do fofíssimo Simba filhote de JD McCrary, a reserva lúdica do remake.


O que mais me incomodou no novo O Rei Leão, porém, foi a maneira com que Jon Favreau parece esvaziar algumas das passagens mais dramáticas do longa. A impressão que fica é que o realizador parece querer simplificar de certa forma a reação dos seus personagens. O que é imperdoável. Apesar de ter quase meia hora de duração a mais que o original, o remake se apressa em passagens em que o tempo ditava o tom dramático da sequência. Simba e os seus amigos reagem de forma mais abrupta aqui. Vide, claro, a fatídica sequência da morte do Mufasa (James Earl Jones). No original (veja abaixo), após a estourada dos Gnus e o ataque covarde de Scar, vem o silêncio. Simba caminha em meio a areia. O cenário assume um tom sombrio\fúnebre. O jovem leão está sozinho, assustado, desesperado e com medo. Na tentativa dele, uma criança, em acordar o seu pai da morte reside a grande carga dramática da cena. Não adianta, eu posso ver essa cena dez vezes e vou me emocionar nas dez. Algo que se perdeu na refilmagem. Favreau dedicou tudo a morte de Mufasa, numa sequência tão impactante à original, e muito pouco ao reencontro entre pai e filho. Embora o esforço de JD McCrary em externar os sentimentos citados acima seja notado (veja acima), a expressão animalesca do filhote reduziu o potencial dramático da sequência. Basta comparar as duas cenas. A diferença é clara. Um problema que, diga-se de passagem, acontece em outras sequências da trama. Cenas como a festa de Rafiki ao perceber que Simba está vivo, ou o “reencontro” do agora jovem leão com o seu saudoso pai são nitidamente diluídas. O didatismo chega a tanto que Favreau se vê obrigado a explicar para o público, numa sequência totalmente dispensável, o porquê do primata celebrar a vida de Simba. Todo o elemento místico, um elemento com raízes fortemente africana, foi sumariamente renegado.


Dito isso, fica fácil explicar porque o novo O Rei Leão é um dos filmes mais decepcionantes lançados em 2019 até aqui. Na busca pelo realismo, pela verossimilhança digital, Jon Favreau sacrificou grande parte da magia que rege o clássico de 1994, dando uma roupagem apenas visualmente virtuosa a uma obra originalmente bem mais densa, dinâmica e vigorosa que o seu remake.  

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