segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Crítica | A Maratona de Brittany

Enxergando além da casca

Brittany era uma garota legal. Boa amiga. Engraçada. Carismática. Atenciosa. A companhia que qualquer um gostaria de ter ao seu lado. Por trás desta faceta irreverente, entretanto, existia uma mulher carente, incomodada com o seu corpo, frustrada com a sua falta de perspectiva. Brittany criou uma casca para “sobreviver” no mundo de aparências em que vivemos. Ela entregava tudo o que tinha para se sentir parte deste ambiente. Em troca ela só pedia “migalhas” de atenção. Só queria o mínimo. Só queria conviver num universo que não julgava seu. E nem isso ela tinha direito. Sem a intenção de simplificar as coisas, A Maratona de Brittany renega grande parte dos clichês dos filmes de autoajuda ao enxergar além desta casca. Num cativante exercício de empatia, algo que anda muito em falta nos grandes centros urbanos, o longa escrito e dirigido por Paul Downs Colaizzo troca o julgamento pela compreensão ao tentar verdadeiramente entender os conflitos de uma jovem mulher em crise de autoestima. Por trás da leveza do texto e da vocação bem-humorada da produção Amazon Studios, porém, existe um estudo de personagem profundo, com sólidos elementos dramáticos e muito a dizer sobre o estrago causado por estas “imposições sociais” na identidade de uma pessoa. 



Com um olhar genuinamente crítico sobre o mundo em que vivemos, uma sociedade repleta de filtros e sentimentos artificiais, A Maratona de Brittany cativa ao mergulhar de cabeça na realidade de muitos homens e mulheres. Em seu longa de estreia, Paul Downs Colaizzo é cuidadoso ao tocar em feridas reconhecíveis. Ao respeitar a dor dos seus personagens. Não demora muito para percebermos que o foco aqui não será\está nas aparências. Indo de encontro a diversos títulos do gênero, o cineasta acerta ao nunca reduzir a crise de Brittany ao lugar comum da vaidade. Não estamos diante do típico filme sobre uma mulher em busca de beleza, de emagrecimento, de um namorado e\ou de um futuro. Ela quer isso tudo e muito mais. Querer, porém, nem sempre é poder. Colaizzo sabe muito bem disso. O grande mérito de A Maratona de Brittany, na verdade, está na sensibilidade do argumento em dar voz ao lado mais humano da sua protagonista. Disposta a correr atrás do tempo perdido, ela decide quebrar a sua sedentária rotina, correr, fazer novos amigos, arranjar um emprego, participar da maratona de Nova Iorque. Os quilos a menos, contudo, não são o bastante para “remendar” uma mulher em crise de autoestima, uma pessoa que durante a maior parte da sua vida preferiu o conforto de uma conveniente casca. 


Por mais que o viés cômico da obra seja evidente, Paul Downs Colaizzo é habilidoso ao em nenhum momento rir da sua personagem. A comicidade, aqui, nasce de forma quase involuntária e tem um forte quê autodepreciativo. Como se as piadas fossem o escudo de Brittany. Algo que, de fato, só a torna mais reconhecível. Ela ri de si mesmo para não chorar. Durante quanto tempo uma pessoa pode suportar isso? Qual o estrago que este comportamento pode causar? Ao responder estar questões A Maratona de Brittany surpreende ao verdadeiramente invadir a psique da sua protagonista. Colaizzo se insurge contra algumas facilitações narrativas ao nunca se apegar demais a pseudo jornada de superação dela. O diretor não está interessado em “vender” uma filosofia de vida. A simples rotina saudável não a transforma numa nova mulher da noite para o dia. Existem feridas mais profundas. Brittany perdeu o amor próprio. Perdeu a capacidade de reconhecer gestos genuínos. Estamos diante de uma protagonista por vezes hostil, amargurada, capaz de descontar a sua frustração naqueles que a querem bem. Colaizzo se encanta pela natureza falha dela. Um predicado valorizado pela marcante presença de Jillian Bell. Acostumada a roubar a cena em elencos “maiores”, ela finalmente ganhou a chance de estrelar o seu próprio projeto. E o fez com maestria. A sua Brittany é ao mesmo tempo expansiva e solitária. Engraçada e insegura. Inteligente e desequilibrada. Vítima e culpada. Um trem desgovernado. Bell imprime em tela uma tridimensionalidade que só fortalece a jornada de empoderamento da protagonista. Fica fácil se identificar com a dor dela.


Outro ponto que agrada, e muito, é a maneira com que o longa constrói\desconstrói as relações afetivas de Brittany. Com um talentoso elenco de apoio em mãos, Paul Downs Colaizzo realça o melhor e o pior da sua protagonista a partir do ponto de vista deles. Além de carismáticos, figuras como a madura Catherine (Michaela Watkins), a egoísta Gretchen (Alice Lee), o zeloso Demetrius (Lil Rel Howery) e o imaturo Jern (Utkarsh Ambudkar) ajudam a escancarar os sentimentos mais reprimidos de Brittany. É legal ver como, mesmo de forma mais superficial, cada um destes personagens ganha nuances próprias, dilemas igualmente reconhecíveis. Um interessante contraponto aos problemas da protagonista. Uma pena que, ao longo da sua segunda metade, A Maratona de Brittany perca tanto da sua natureza espontânea. De maneira até desnecessária, Colaizzo pesa a mão ao tentar mostrar que existem várias outras Brittany’s no mundo, culminando numa sequência um tanto quanto gratuita e sentimental. Uma cena que, embora faça sentido dentro da lógica amargurada da protagonista, poderia ter sido resolvida de forma bem menos didática. Somado a isso, na transição para o último ato, o roteiro se rende à um punhado de soluções convenientes\genéricas, flertando com uma série de clichês que até então não tinham ganhado vez dentro do longa. 


Nada que de forma alguma diminua o impacto de A Maratona de Brittany. Uma obra que, ao ir bem além do vazio dos livros de autoajuda, investiga as agruras de inúmeras mulheres modernas sob uma perspectiva intimista, irônica e inteligente. Mais do que um filme sobre o poder da amizade e da transformação, uma lição sobre como nunca é tarde para deixarmos para trás a casca que criamos para nós mesmos.

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