sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Crítica | Pássaro do Oriente

Gente Estranha

Pássaro do Oriente é o tipo de filme que intriga pelos motivos errados. O mistério está muito mais atrelado ao estranhamento causado pela obra do que propriamente por méritos narrativos. Embora, no papel, tudo pareça bastante reconhecível, o longa dirigido por Wash Westmoreland (Para Sempre Alice) frustra ao não trabalhar com a devida propriedade a natureza dos seus peculiares personagens. Sobra então um filme estiloso, com elementos por si só instigantes, mas de um vazio que chega a constranger a inteligência do público. Um thriller que, na ânsia de proteger a qualquer custo os seus (previsíveis) segredos, torna tudo estranhamente robótico. 

Preciso confessar algo. Numa daquelas pirações interpretativas um tanto quanto aleatórias, cheguei a cogitar que Pássaro do Oriente fosse uma continuação indireta de Ex_Machina: Instinto Artificial (2014). Involuntariamente ou não, Wash Westmoreland causa uma atração natural ao investir numa protagonista fria, comedida, com reações sempre muito calculadas. Alguém “programada” para agir daquela forma. No embalo da presença implosiva de Alicia Vikander, de longe o maior atrativo da produção original Netflix, o realizador faz da sua hipnótica Lucy um tipo de difícil tradução. O que, verdade seja dita, funciona inicialmente. Estamos diante de uma jovem ocidental que por motivos desconhecidos decidiu fazer sua vida no Japão nos anos 1980. Ela é introspectiva, solitária, talvez amargurada, talvez independente. É legal ver como, neste primeiro momento, o cineasta entrega apenas o bastante para que possamos decifrá-la. A estranheza inicial logo se torna de certa forma compreensível. Lucy confia desconfiando. Algo a impede de se entregar totalmente aquilo que ela gosta\simpatiza. 


Enquanto um estudo de personagem da protagonista, na verdade, Pássaro do Oriente até funciona a contento. Em especial pela capacidade do argumento em, durante a investigação do desaparecimento da melhor amiga de Lucy (Riley Keough), juntar as peças do quebra-cabeça que ajudam a entender melhor a mulher do primeiro ato. Fazendo um competente uso da narrativa em perspectiva, Wash Westmoreland consegue manter a sensação de estranhamento em alta ao investir num inusitado triângulo amoroso. Ao longo da primeira metade da obra, o realizador é sagaz ao plantar algumas dúvidas na cabeça do espectador. Ao levantar questões sobre a raiz do comportamento da sua protagonista. O problema é que, no momento em que deveria se aprofundar nesses conflitos, Wesmoreland perde o fio da meada ao tornar tudo bizarramente robótico. O que falar, por exemplo, do interesse amoroso de Lucy, o gélido Teiji (Naoki Kobayashi). Ao contrário de Alicia Vikander, que, numa performance minuciosa, consegue exprimir as emoções da sua reprimida personagem com um misto perplexidade, temor e frustração, o ator nipônico não parece agir como um ser humano em nenhuma passagem da obra. O seu Teiji é rude, é oco, é intragável. Não existe química entre os dois, a relação deles é construída com total conveniência, o obsessivo pano de fundo fotográfico é explorado de forma risível. Estamos diante de um arquétipo. Um tipo maleável, manipulável ao bel prazer do roteiro. Uma figura que ajuda a enfraquecer a obra.


Se já era difícil comprar a ideia de uma mulher se interessar por aquele homem, Pássaro do Oriente extrapola o limite da verossimilhança ao nos fazer crer que uma segunda entraria nesta equação. O que já era ruim fica pior quando a deslocada Lily (Riley Keough) surge em cena. Ao invés de energizar a trama como o esperado, a personagem ajuda a tornar tudo mais esquisito. Na ânsia de criar um pseudo clima de tensão, Wash Westmoreland peca também pelo maniqueísmo ao tentar imprimir em tela um forçado clima de perigo iminente. Por mais que, à esta altura, nós já tenhamos o conhecimento do desaparecimento da personagem, a sensação de insegurança não cola graças a total incapacidade do realizador em explorar o suspense psicológico. Em se aprofundar na psique dos seus personagens. No estado de espírito deles. Nos traumas que eles carregam. Ao invés disso, o diretor opta por interferir demasiadamente não só na trama, com direito a manipulativas sequências de alucinação, como também na performance do elenco. Como se, na base da força, ele quisesse que nós começássemos a desconfiar da perspectiva dos seus personagens. Diante disso, Lily logo se revela uma figura inconsistente de ações contraditórias. O que prejudica a performance de Keough, perdida em meio as pretensões do argumento.


Num todo, aliás, as complexas nuances sentimentais\afetivas pensadas pelo argumento para cada um dos personagens nunca são concretizadas em cena. Tudo é muito abrupto. Muito disfuncional. Muito artificial. O que fica bem claro, em especial, na inacreditável sequência da dança no pub. Uma daquelas passagens que beira a vergonha alheia tamanha a imaturidade da cena. Um problema que ajuda a explicar também o vazio último ato. Por mais que Wash Westmoreland consiga nos manter fisgados quanto ao destino da Lucy de Alicia Vikander, o clímax não poderia ser mais previsível e repentino. O que, verdade seja dita, nem chega a ser tão decepcionante assim. Finalmente alguma coisa faz real sentido aqui. O incômodo, de fato, fica pela sensação de potencial desperdiçado, principalmente quando argumento (tardiamente) se arrisca a tocar em temas mais densos como as sequelas em torno de um relacionamento tóxico e o sentimento de culpa das mulheres. Um 'background' realístico que, diante do contexto em que a trama estava inserida, a conservadora sociedade nipônica, deveria ser tratado com muito mais profundidade. 


Com claros predicados estéticos, a imersiva fotografia soturna de Chung-hoon Chung (Oldboy, Eu, Você e a Garota que Vai Morrer) combinada com os invasivos enquadramentos fechados de Wash Westmoreland potencializam o clima de aflição\estranhamento pensado pelo roteiro, Pássaro do Oriente se perde por completo ao não entender a natureza dos seus personagens. A tensão, aqui, nasce muito mais da enérgica trilha sonora de Aticus Ross (A Rede Social), do que propriamente do desenvolvimento narrativo. No fim, a impressão que fica é que o longa sacrifica a complexidade da premissa ao tratar os seus personagens como meros robôs vítimas das suas falhas de programação.

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