Pássaro do Oriente é o tipo de
filme que intriga pelos motivos errados. O mistério está muito mais atrelado ao
estranhamento causado pela obra do que propriamente por méritos narrativos.
Embora, no papel, tudo pareça bastante reconhecível, o longa dirigido por Wash
Westmoreland (Para Sempre Alice) frustra ao não trabalhar com a devida
propriedade a natureza dos seus peculiares personagens. Sobra então um filme
estiloso, com elementos por si só instigantes, mas de um vazio que chega a
constranger a inteligência do público. Um thriller que, na ânsia de proteger a
qualquer custo os seus (previsíveis) segredos, torna tudo estranhamente
robótico.
Preciso confessar algo. Numa daquelas pirações interpretativas um tanto quanto aleatórias, cheguei a cogitar que Pássaro do Oriente fosse uma continuação indireta de Ex_Machina: Instinto Artificial (2014). Involuntariamente ou não, Wash Westmoreland causa uma atração natural ao investir numa protagonista fria, comedida, com reações sempre muito calculadas. Alguém “programada” para agir daquela forma. No embalo da presença implosiva de Alicia Vikander, de longe o maior atrativo da produção original Netflix, o realizador faz da sua hipnótica Lucy um tipo de difícil tradução. O que, verdade seja dita, funciona inicialmente. Estamos diante de uma jovem ocidental que por motivos desconhecidos decidiu fazer sua vida no Japão nos anos 1980. Ela é introspectiva, solitária, talvez amargurada, talvez independente. É legal ver como, neste primeiro momento, o cineasta entrega apenas o bastante para que possamos decifrá-la. A estranheza inicial logo se torna de certa forma compreensível. Lucy confia desconfiando. Algo a impede de se entregar totalmente aquilo que ela gosta\simpatiza.
Enquanto um estudo de personagem
da protagonista, na verdade, Pássaro do Oriente até funciona a contento. Em
especial pela capacidade do argumento em, durante a investigação do
desaparecimento da melhor amiga de Lucy (Riley Keough), juntar as peças do
quebra-cabeça que ajudam a entender melhor a mulher do primeiro ato. Fazendo um
competente uso da narrativa em perspectiva, Wash Westmoreland consegue manter a
sensação de estranhamento em alta ao investir num inusitado triângulo amoroso. Ao
longo da primeira metade da obra, o realizador é sagaz ao plantar algumas
dúvidas na cabeça do espectador. Ao levantar questões sobre a raiz do
comportamento da sua protagonista. O problema é que, no momento em que deveria
se aprofundar nesses conflitos, Wesmoreland perde o fio da meada ao tornar tudo
bizarramente robótico. O que falar, por exemplo, do interesse amoroso de Lucy,
o gélido Teiji (Naoki Kobayashi). Ao contrário de Alicia Vikander, que, numa
performance minuciosa, consegue exprimir as emoções da sua reprimida personagem
com um misto perplexidade, temor e frustração, o ator nipônico não parece agir como um ser humano em
nenhuma passagem da obra. O seu Teiji é rude, é oco, é intragável. Não
existe química entre os dois, a relação deles é construída com total
conveniência, o obsessivo pano de fundo fotográfico é explorado de forma risível. Estamos
diante de um arquétipo. Um tipo maleável, manipulável ao bel prazer do roteiro.
Uma figura que ajuda a enfraquecer a obra.
Se já era difícil comprar a ideia
de uma mulher se interessar por aquele homem, Pássaro do Oriente extrapola o
limite da verossimilhança ao nos fazer crer que uma segunda entraria nesta
equação. O que já era ruim fica pior quando a deslocada Lily (Riley Keough) surge
em cena. Ao invés de energizar a trama como o esperado, a personagem ajuda a
tornar tudo mais esquisito. Na ânsia de criar um pseudo clima de tensão, Wash
Westmoreland peca também pelo maniqueísmo ao tentar imprimir em tela um forçado
clima de perigo iminente. Por mais que, à esta altura, nós já tenhamos o
conhecimento do desaparecimento da personagem, a sensação de insegurança não
cola graças a total incapacidade do realizador em explorar o suspense
psicológico. Em se aprofundar na psique dos seus personagens. No estado de espírito
deles. Nos traumas que eles carregam. Ao invés disso, o diretor opta por interferir demasiadamente não só na
trama, com direito a manipulativas sequências de alucinação, como também na performance do elenco. Como se, na base da força, ele quisesse que nós começássemos a desconfiar da perspectiva dos seus personagens. Diante disso, Lily logo se revela uma figura inconsistente de ações contraditórias. O que prejudica a performance de Keough, perdida em meio as pretensões do argumento.
Num todo, aliás, as complexas nuances
sentimentais\afetivas pensadas pelo argumento para cada um dos personagens nunca são concretizadas em cena. Tudo é
muito abrupto. Muito disfuncional. Muito artificial. O que fica bem claro, em
especial, na inacreditável sequência da dança no pub. Uma daquelas passagens
que beira a vergonha alheia tamanha a imaturidade da cena. Um problema que
ajuda a explicar também o vazio último ato. Por mais que Wash Westmoreland consiga
nos manter fisgados quanto ao destino da Lucy de Alicia Vikander, o
clímax não poderia ser mais previsível e repentino. O que, verdade seja dita,
nem chega a ser tão decepcionante assim. Finalmente alguma coisa faz real
sentido aqui. O incômodo, de fato, fica pela sensação de potencial
desperdiçado, principalmente quando argumento (tardiamente) se arrisca a tocar
em temas mais densos como as sequelas em torno de um relacionamento tóxico e o sentimento de culpa
das mulheres. Um 'background' realístico que, diante do contexto em que a trama estava inserida, a conservadora sociedade nipônica, deveria ser tratado com muito mais profundidade.
Com claros predicados estéticos,
a imersiva fotografia soturna de Chung-hoon Chung (Oldboy, Eu, Você e a Garota
que Vai Morrer) combinada com os invasivos enquadramentos fechados de Wash
Westmoreland potencializam o clima de aflição\estranhamento pensado pelo roteiro,
Pássaro do Oriente se perde por completo ao não entender a natureza dos seus
personagens. A tensão, aqui, nasce muito mais da enérgica trilha sonora de
Aticus Ross (A Rede Social), do que propriamente do desenvolvimento narrativo. No
fim, a impressão que fica é que o longa sacrifica a complexidade da premissa ao
tratar os seus personagens como meros robôs vítimas das suas falhas de
programação.
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