quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Crítica | Querido Menino

Realidade na veia

Implacável ao invadir a devastadora rotina familiar de um dependente químico, Querido Menino é o tipo de soco no estômago necessário. Consciente da importância do tema proposto, o inquieto diretor Felix Van Groeningen (Alabama Monroe) escancara uma realidade tantas vezes exposta numa obra intimista e profunda. Um filme com muito a dizer sobre o fardo da culpa no tortuoso processo de recuperação. Sob um ponto de vista assustadoramente reconhecível, o cineasta dinamarquês não titubeia em imprimir em tela os altos e baixos de um jovem viciado, criando um choque natural ao fazer dos contrastes a sua principal arma. Um retrato sem filtros sobre o estrago causado pela dependência não só no aspecto físico, mas principalmente no emocional.

Com base nos livros dos dois protagonistas, o jovem Nic (Timothée Chalamet) e o seu cuidadoso pai David Shaff (Steve Carrel), Querido Menino rompe com alguns dos clichês dos “filmes baseados em fatos” ao não reduzir tudo a causa e consequência. A ousada estrutura narrativa não linear pensada por Felix Van Groeningen permite que o longa vá bem além da casca ao invadir a mente dos seus personagens. Sem medo de truncar o ritmo da sua obra, o realizador é habilidoso ao “olhar” sempre através dos fatos. As memórias afetivas de David e do próprio Nic podem ser mais desconcertantes do que ver um jovem se contorcendo no chão de um banheiro imundo em meio a overdose. Os contrastes surgem com naturalidade e só realçam a dor dos personagens. Como aquele garotinho feliz, talentoso, se transformou numa vítima da sua própria amargura? Como aquele ambiente funcional, saudável, gerou um ‘junkie’ com tantos problemas? Os intuitivos ‘flashbacks’ ganham forma não para contextualizar, ou para explicar, mas para refletir o estado de espírito desta família, o nível de tristeza, culpa, incredulidade por parte dos pais. Tal qual David nos pegamos se perguntando onde está o erro. Sem a intenção de responder estas perguntas, Groeningen universaliza as coisas ao nunca tentar buscar motivos. Por mais que, nas entrelinhas, o longa toque em temas como o divórcio, a rebeldia juvenil e a ausência materna, o cineasta em nenhum momento parece apontar o dedo. O perceptível sentimento de culpa nasce de dentro dos personagens.


O grande diferencial de Querido Menino, na verdade, fica pelo nível de realismo com que o longa estuda as reações de um zeloso pai diante do fantasma da dependência química. Tudo aqui é muito verossímil. Felix Van Groeningen não se contenta somente em expor a dor dos envolvidos. O diretor quer que o público compreenda as decisões dos seus personagens. E para isso ele simplesmente para e os ouve. No vai e vem narrativo proposto pelo dinâmico argumento, o longa consegue tanto estreitar o elo entre pai e filho, quanto traduzir o processo de desgaste de uma figura paterna cansada de sofrer. Aos olhos de Steve Carell, monumental em cena, percebemos o misto de esperança e frustração, de resiliência e esgotamento, de felicidade e desespero de David. Groeningen, em especial, é cuidadoso ao traduzir a fragilidade no processo de reabilitação. Um passo em falso e tudo pode ruir. Um passo em falso e o que já era ruim poderia ficar pior. Uma linha tênue capaz de verdadeiramente destruir uma família.


Algo que fica bem claro quando Querido Menino se concentra no ponto de vista de Nic. Embora assuma uma visão mais didática\previsível quanto ao estrago da dependência química na identidade de um garoto, Groeningen é igualmente sutil ao abordar os gatilhos que o levaram a tal situação. Com um olhar humano, o longa busca a compreender mesmo quando as respostas são bem complexas. Nic caiu numa perigosa armadilha e perdeu a capacidade de sair dela. Consciente disso, o realizador tenta transforma-lo num exemplo factível sem necessariamente inocenta-lo. Enxergamos o melhor e o pior dele. As suas falhas e virtudes. Um retrato sensível interpretado com enorme respeito por Timothée Chalamet. Com feições quase angelicais, o ator é habilidoso ao tornar o processo de degradação do seu Nic o mais realístico possível. Ele captura com rara felicidade a falsa sensação de controle de um dependente químico. O misto de medo, fissura, agonia, tristeza, inocência e vulnerabilidade. Chalamet torna o choque do público natural. Algo fundamental num filme deste porte. Uma pena que, na ânsia de reforçar o vínculo entre pai e filho, Groeningen esvazie tanto a figura da mãe biológica vivida pela expressiva Amy Ryan, o que explica a incapacidade do roteiro em tecer comentários mais complexos sobre o efeito do divórcio na identidade de Nic.


Intenso e comovente, Querido Menino é, em sua essência mais pura, a realidade na veia. Usando a iluminada fotografia diurna de Ruben Impens como uma inteligente ferramenta de contraste, Felix Von Groeningen toca em chagas sociais reconhecíveis com peso e profundidade, renegando alguns velhos clichês ao mostrar que a dependência química não escolhe as suas vítimas.

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