terça-feira, 24 de setembro de 2019

Crítica | Ma

A Estranha

Um ‘slasher movie’ diferente, Ma é o tipo de filme que se arrisca. Uma alternativa para quem está cansado de vilões unidimensionais e praticamente imparáveis, o curioso longa dirigido por Tate Taylor (Histórias Cruzadas) fisga ao extrair a tensão do bizarro. Tudo parece bem estranho aqui. Usando o ‘bulying’ como o ponto de partida para a construção de uma premissa insinuante, o cineasta se apropria com originalidade de elementos fabulescos na construção de um thriller de horror mais sagaz do que parecia inicialmente. Por mais que o argumento vacile quando decide abraçar as convenções mais tradicionais do gênero, em especial no terço final, a insana presença de Octavia Spencer ajuda a elevar o nível da brincadeira e a reoxigenar uma fórmula tantas vezes explorada dentro do segmento. O resultado é uma obra que troca o susto pelo desconforto, principalmente pela propriedade com que toca em questões extremamente reconhecíveis. 


Tratar Ma como uma atualização do clássico conto de João e Maria não chega a ser um exagero. Muito pelo contrário. Numa época que o viés lúdico anda tão em baixa, Tate Taylor é perspicaz ao conferir uma aura levemente fabulesca a um ‘plot’ muito atual. Troque a casa recheada de doces por um porão abastecido com bebidas alcoólicas e temos uma releitura genuinamente urbana da obra dos Irmãos Grimm. Nela, para conseguir comprar cervejas e vodcas, um grupo de menores decide pedir ajuda a uma solicita e aparentemente inofensiva senhora, a assistente de veterinária Ma (Octavia Spencer). Inicialmente relutante, ela encontra nos jovens algo que parecia perdido no seu passado e decide ajuda-los. O que parecia um gesto isolado, no entanto, ganhar contornos maiores quando ela decide abrir a sua casa para que eles pudessem beber em segurança. Inicialmente desconfiados, Maggie (Diana Silvers), Haley (McKaley Miller) e Andy (Corey Fogelmanis) decidem dar um voto de confiança a Ma. Isso sem sequer desconfiar das reais intenções desta improvável “anfitriã”.


O primeiro grande trunfo de Ma reside na figura da sua antagonista. Diferente de tudo o que temos visto no gênero nos últimos anos, a persuasiva mulher causa um estranhamento natural logo nos seus primeiros minutos de tela. Ela não precisa de máscara para assustar ou incomodar. A sua presença e principalmente os seus atos causam (ou deveriam) um desconforto natural. Embora, aos olhos de hoje, Ma não seja personificada como uma ameaça padrão, qualquer um que tenha crescido lendo fábulas ou assistindo clássicos Disney sabe que o perigo costuma se esconder em rostos inofensivos. Tate Taylor sabe disso. Enquanto o grupo de adolescentes não enxerga o problema escondido na situação criada por ela, o realizador é astuto ao realçar a sensação de perigo iminente. A falta de maturidade (ou malícia) dos garotos serve muito bem ao roteiro. Na busca por algo que querem tanto, bebidas grátis e festas, eles abaixam a sua guarda, se expõem a presença desta exótica figura. Um sentimento potencializado pela marcante presença de Octavia Spencer. Longe do que consideramos a sua zona de conforto, a vencedor do Oscar por Histórias Cruzadas traduz como poucos a instabilidade de Ma. Antes mesmo do roteiro se aprofundas na psique da personagem, ela nos permite enxergar que estamos diante de um tipo complexo. Com algo em mente. Com frustrações e anseios.


Enquanto se concentra na figura de Ma e na relação dela com os jovens, na verdade, o argumento assinado por Scotty Landes é habilidoso ao construir o clima de tensão em torno dos seus esquisitos atos. O cenário por si só é ambíguo. Ver jovens bebendo e curtindo ao lado (ou sob a supervisão) de uma adulta estranha já soa bastante confuso. É na reação dela a presença\ausência deles, porém, que Tate Taylor melhor explora o efeito causado pela sua antagonista. Se por um lado, através dos pontuais ‘flashbacks’, o realizador mostra sutileza ao conferir um olhar humano sobra Ma, por outro não demora muito para percebermos que escondido nos afetuosos gestos dela existe amargura, raiva e obsessão. Como se, ao lado deles, ela tivesse retomando algo que lhe foi tomado. Sem querer revelar muito, Taylor é inteligente ao estabelecer as motivações da personagem sem sacrificar o estranho laço criado entre ela e os adolescentes. Por falar neles, o cineasta é igualmente cuidadoso ao conferir aos mais jovens traços muito reconhecíveis. Eles são relapsos, inocentes, as vezes maldosos, mas nunca completamente estúpidos. O estranhamento causado junto ao público logo os contamina também. O que só reforça o clima de tensão em torno da figura de Ma. Por mais que Taylor peque ao não dar arcos mais sólidos ao núcleo ‘teen’, ele consegue extrair o máximo deles para a construção do suspense, em especial da novata Maggie, tornando tudo mais tênue à medida que ela enxerga além da farra e do estoque de bebidas.


No momento em que Ma (o filme) decide assumir a sua face mais gráfica, no entanto, Tate Taylor vacila ao repentinamente emburrecer os seus personagens. Embora Ma (a personagem) siga causando um efeito bastante original, o realizador se rende à algumas soluções bem pobres na tentativa de amarrar as arestas. Um problema potencializado pela incapacidade do roteiro em trabalhar as nuances do núcleo adulto. De uma hora para outra o clima ambíguo da primeira metade se esvai. Existe uma clara sensação de potencial desperdiçado. Figuras como a mãe divorciada vivida pela sempre carismática Juliette Lewis e o viúvo interpretado por Luke Evans deveriam ter uma participação mais ativa dentro da trama. Este último, aliás, se transforma repentinamente numa cena chave de forma conveniente. Se por um lado o argumento é competente ao justificar a raiz do comportamento sociopático de Ma sem se explicar demais, por outro é simplório ao dar voz àqueles que de alguma forma acarretaram isso. Tudo se dá de forma apressada. Falta a Taylor também uma assinatura autoral quando decide abraçar o elemento ‘slasher’ da obra. O realizador se sai muito melhor (pasmem vocês) extraindo a tensão da figura de Octavia Spencer do que das mais tradicionais convenções do gênero. O terror aqui aflige, mas não vai além disso. Nada que, de fato, prejudique o funcional clímax, um desfecho bem-resolvido visualmente incrementado pela surpreendente performance desta talentosa atriz. O olhar sinistro de Spencer é muito mais eficiente do que qualquer solução ‘gore’.


Em suma, influenciado por títulos do porte de Carrie: A Estranha (1976) e Louca Obsessão (1990), Ma é um filme divisivo, com uma execução talvez pouco impactante, mas capaz de oferecer uma experiência bem mais original (ou talvez peculiar) do que temos assistido no gênero nos últimos anos. 

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