sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Crítica | O Tradutor

Filhos de Chernobyl

A tragédia de Chernobyl é um tema rico a ser explorado. Trinta e três anos depois, o catastrófico acidente e o consequente rastro de destruição deixado por ele seguem repercutindo. As feridas estão longe de serem cicatrizadas. A cidade fantasma de Pripyat é uma chaga exposta. Produções como a aclamada minissérie da HBO Chernobyl (2019), por exemplo, só reforçam o impacto ainda hoje causado pelo evento. Entre as inúmeras obras lançadas sobre a tragédia, entretanto, O Tradutor merece o destaque por ir bem além do drama humano. Inspirado em fatos, o longa cubano dirigido pelos irmãos Rodrigo e Sebastián Barriuso é cuidadoso ao mostrar como o implacável efeito da radiação corroeu também o regime Soviético. Por mais que o foco esteja na figura de Malin, pai dos diretores que, no final da década de 1990, foi um dos escolhidos para ser o tradutor das famílias das vítimas de Chernobyl mandadas para Cuba em busca de tratamento, o subestimado longa vai além ao associar a hecatombe atômica em solo ucraniano ao colapso do socialismo ao redor do mundo. O resultado é uma produção saudosista, mas ao mesmo tempo crítica capaz de revelar o começo do fim com intensidade, comedimento e um forte senso de humanidade. 



Muitos especialistas tratam a tragédia de Chernobyl como um dos golpes mais duros contra a URSS. Moral e financeiro. Como se não bastasse o impacto do desastre junto à comunidade científica internacional, o governo soviético precisou despejar uma quantia incalculável para conter os efeitos da radiação, remover os moradores locais e indenizar as vítimas. Uma ação que obviamente trouxe consequências a todos os países socialistas que dependiam do suporte da grande nação do leste europeu. Entre eles Cuba. Tanto que em 1989, ponto de partida para O Tradutor, o líder soviético Mikhail Gorbachev desembarcou em Havana para tentar aparar as arestas com um insatisfeito e temeroso Fidel Castro. Àquela altura, com a economia debilitada e uma série de problemas políticos, a União Soviética já não tinha muito a oferecer além de uma infrutífera tentativa de conciliação. O estrago já estava feito. O liberalismo ganhava força em solo soviético. Apesar da euforia quanto ao encontro, vendido como uma mostra de prestígio de Fidel, Cuba não demoraria muito para começar a ter de andar com as suas próprias pernas. A existir sem o subsídio. Na bagagem, porém, Gorbachev não trouxe apenas promessas vazias. Com ele vieram milhares de vítimas de Chernobyl. Numa tentativa de selar a conciliação com os soviéticos, Fidel ofereceu o seu país e o seu elogiado sistema de saúde como uma alternativa. Uma ajuda que, naturalmente, não foi recusada.


Sob a perspectiva do altruísta Malin (Rodrigo Santoro), um respeitado professor de russo obrigado a deixar o seu posto para atender o chamado dos seus superiores, O Tradutor é habilidoso ao traduzir o efeito dominó potencializado pelo acidente em Chernobyl. Por mais que, num primeiro momento, a abordagem saudosista proposta por Rodrigo e Sebastían Barriuso sugira uma abordagem enviesada dos fatos, a dupla é categoria ao pouco a pouco capturar a posição de vulnerabilidade do povo cubano diante da “seca” soviética. Com soluções simples, mas eficazes, a dupla transita do micro para o macro com desenvoltura, permitindo que o público enxergue como um país funcional e próspero mergulhou de uma hora para outra no racionamento. “Eles (soviéticos) dão petróleo em troca de açúcar”, diz em determinado momento um obstinado Malin. Como um funcionário público que se preze, ele confiava no regime Castro, na visão de mundo igualitária, no efeito perverso da “ameaça estrangeira”. É legal ver como, à medida que a trama avança, o competente argumento assinado por Lindsay Gossling, traduz o choque de ideias em solo cubano a partir da perspectiva de Malin e da sua independente esposa Isona (Yoandra Suárez). Ao contrário do seu idealista pai, os irmãos Barriuso deixam a nostalgia em segundo plano ao expor a condição de miséria imposta ao povo cubano neste processo, refletindo sobre a cegueira do seu pai com propriedade. Um homem incapaz de enxergar o que já parecia bem claro. O contexto sócio-político, aqui, mesmo nas entrelinhas, é trabalhado com esmero, assim como o gradativo conflito entre Malin e Isona.


É no aspecto micro, porém, que reside o melhor de O Tradutor. E muito em função do olhar humano dos irmãos Barriuso para com a figura do seu pai. Sem a intenção de tirar do papel um Patch Adams (1998) versão latina, a dupla de cineastas invade a intimidade do seu querido pai com peso e honestidade. Por trás do altruísmo existia um homem devastado e errático. Talvez por sentirem na pele o impacto da ausência, em especial o mais velho Sebastian, os dois não titubeiam em expor os dois lados da moeda. Ao mesmo tempo em que capturam a dedicação e o esforço de Malin na tentativa de oferecer algo a mais as crianças vítimas da radiação de Chernobyl, a dupla é incisiva ao traduzir o impacto do distanciamento no seu núcleo familiar. Existe um preço a pagar aqui. É impossível assistir a tudo aquilo, ao sofrimento de inocentes, e não absorver a toxicidade da situação. Com intensidade e comedimento, os irmãos Barriuso são categóricos ao imprimir em tela a deterioração de um homem que não estava preparado para lidar com tamanho desafio. Um predicado potencializado pela maiúscula performance de Rodrigo Santoro. Um dos atores mais subestimados do mundo em atividade, o brasileiro se afunda no misto de dor, desespero, angústia e altruísmo do protagonista com extrema humanidade. Santoro exibe o melhor sem ocultar o pior do professor. O seu Malin é falho, é relapso, é hostil. Na ânsia de absorver sozinho toda a tristeza enfrentada, o seu personagem se torna agressivo e distante. Sem querer revelar muito, o argumento é particularmente habilidoso ao capturar a deterioração da relação entre ele e Isona. O sofrimento é real. O mesmo, aliás, podemos falar da instável parceria entre Malin e a obstinada enfermeira Glady (Maricel Álvares, excelente). Um elo de amizade complexo desenvolvido com sutileza pela trama.


O que falar então do crescente vínculo entre o tradutor e as crianças. Sem nunca escorregar no terreno do sentimentalismo neste aspecto, os irmãos Barriuso extraem o máximo das talentosas crianças na construção de sequências de partir o coração. Mais uma vez a dor é evidente. Por mais que figuras como Malin surjam para atenuar o sofrimento, a sensação de solidão e vulnerabilidade é traduzida com maestria pelo argumento. A sequência das moscas mortas em torno de uma das crianças é bizarra. Neste aspecto, o longa desponta como um belo completo para a série Chernobyl ao escancarar o quão grande foi o rastro de destruição causado pela tragédia. Embora, na transição para o último ato, o argumento peque pela condescendência ao flertar com gatilhos dramáticos facilmente antecipáveis, O Tradutor supera as expectativas ao nos brindar com um relato muito mais complexo e completo sobre as sequelas sociais\políticas causadas pela radioatividade. Uma ameaça invisível capaz de destruir regimes, famílias e especialmente vidas.

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