Existem dois filmes em O Gênio e
o Louco. Um, uma cinebiografia protocolar sobre os bastidores da criação do
respeitado dicionário de Oxford, referência máxima dentro do gênero. O outro,
um drama denso sobre o impacto da loucura na rotina de um dos principais
colaboradores da obra, um assassino confesso detido num sanatório. Embora prefira
a conveniência do viés reverencial, o elegante longa de estreia dirigido por
Farhad Safinia (roteirista do excelente Apocalypto) transborda humanidade
sempre que se concentra na figura do colaborador, indo bem além das
expectativas ao refletir sobre a insanidade e os efeitos causados por ela na
identidade de um inocente. Um predicado potencializado pelas magnéticas
presenças de Mel Gibson e Sean Penn, que, mesmo diante da burocrática estrutura
narrativa, elevam o nível da produção ao tratarem com o devido peso esta
inspiradora relação.
Enquanto se concentra na jornada do determinado James Murray (Mel Gibson) na busca pela realização de um dicionário capaz de reunir todas as palavras publicadas na língua inglesa e as suas origens, O Gênio e o Louco traz consigo todos os principais vícios das cinebiografias recentes. Embora o roteiro assinado pelo veterano John Boorman, por Todd Komarnicki e pelo próprio Farhad Safina, a partir do livro de Simon Winchester, até consiga mostrar para o público o quão árduo e caótico foi o processo de realização da obra, o longa segue um caminho formulaico ao rechear a trama com soluções convenientes. Tudo é muito fácil e previsível. Quando tudo parece que vai bem, um problema aparentemente insolúvel aparece para testar a fibra moral dos criadores da enciclopédia. Quando o fim parece iminente, um “milagre” surge para recolocar as coisas nos trilhos. Em vários momentos as respostas surgem em ‘insights’ obviamente forçados, daqueles típicos das cinebiografias. Se por um lado Safina se esforça para revelar as sequelas de tanta devoção na rotina da família e do esfriado casamento de Murray, por outro o argumento abraça a superficialidade ao não dar uma voz constante a esposa resoluta vivida por uma intensa Jennifer Ehle. Uma personagem que, até em função do seu crescimento no ato final, merecia um arco mais profundo. Falta ação, sobra resiliência por parte dela. Um nítido desperdício de potencial.
No momento em que se descola dos
fatos e passa a se concentrar no drama humano, entretanto, O Gênio e o Louco
dá um considerável salto de qualidade. Muito em função, é verdade, pela forma
densa com que decide tratar a insanidade do Drº William Chester (Sean Penn). Farhad
Safina é cuidadoso ao evitar a vilanização, ao expor para o público a
vulnerável posição de um homem vítima dos seus próprios traumas. Indo de
encontro a maioria dos filmes do gênero, o realizador renega os clichês ao não
entender o sanatório como um ambiente necessariamente ruim ou vil. Existe
compreensão. Existe a crença na recuperação. Existe humanidade. As palavras
surgem então como um refúgio. O sopro de sanidade na mente de um homem
quebrado. Embora ambientado numa época em que psicologia e experimentalismo
caminhavam de mãos dadas, Safina foge do lugar comum ao dar ênfase a tentativa
de tratamento. Sob a supervisão do dúbio chefe da instalação, o Drº Richard
Byrne (Stephen Dillane, ótimo), uma figura complexa que serve muito bem à
trama, o realizador é inteligente ao investigar a psique de Chester, ao explorar
os seus medos, anseios, culpas e a sua errática tentativa de fugir de um
inimigo íntimo. Mesmo tomando algumas liberdades poéticas quanto aos fatos, da
relação entre ele e a viúva vivida por uma comedida Natallie Dormer (Game of
Thrones) nascem alguns dos momentos mais comoventes da obra. Daqueles que tem
bastante a dizer sobre o estado de espírito do personagem. Enquanto a
trajetória profissional de James é tratada sob uma roupagem superficial, a
jornada pessoal de William é abordada com muito mais intimidade, o que
naturalmente o transforma no elemento mais interessante dentro da história. Um
problema numa produção que, pretensamente, deveria (e de fato se concentra
mais) na árdua confecção do dicionário de Oxford.
Em compensação, nos momentos em
que verdadeiramente foca nos conflitos de William e na sua repentina relação
com James Murray, O Gênio e o Louco faz jus as expectativas ao entender a
angústia dos seus personagens. Por mais que o elo entre os dois seja
introduzido com certo descuido, de uma hora para outra eles estão se chamando
de irmãos, Farhad Safina preza pela fidelidade aos fatos enquanto arquiteta
esta inspiradora história de amizade. Sem nunca pesar a mão demais no
sentimentalismo, o roteiro é sagaz ao estabelecer a dívida de gratidão de
Murray para com a figura de William, os segredos em torno desta parceria
profissional e o misto de empatia, compreensão e desconforto quanto a realidade
que os separava. É legal ver, em especial, como o realizador gradativamente desconstrói
o rótulo de assassino aos olhos do autor do dicionário de Oxford (e
consequentemente do público), evitando criar qualquer tipo de suspense e\ou
mistério em torno da atormentada condição do colaborador. Um tema que merecia
ser tratado com a devida seriedade. Uma abordagem humana, de fato,
potencializada pelas fortes presenças de Mel Gibson e Sean Penn. Mesmo com um
material mais limitado em mãos, o astro da franquia Mad Max surge mais uma vez
magnético em cena. Menos louco e mais dedicado, Gibson entrega um James Murray
obstinado, disposto a desafiar aqueles que não acreditavam no seu potencial.
Ele transmite verdade no seu olhar, transmite compaixão, transmite aquilo que o
texto deveria e muitas vezes não consegue. O mesmo, aliás, podemos dizer de
Sean Penn. Com um tipo bem mais complexo em mãos, o engajado ator mergulha na
loucura do seu personagem com humanidade, evitando reduzir tudo a maneirismos
físicos ao nos fazer compreender a sua dor, entender as suas reações,
experimentar a sua desilusão. Existe lucidez em meio à loucura e é justamente
por isso nos simpatizamos mais com o seu William. Um traço explorado com
propriedade por Penn.
O Gênio e o Louco é também um
filme vistoso. Mesmo nos momentos mais irregulares da obra, o esmero estético
da produção salta aos olhos. Por mais que a direção de Farhad Safina seja
apenas operacional, repleta de planos simples concentrados na expressividade do
seu talentoso elenco, a equipe de direção de arte e figurino faz um valoroso
trabalho na reconstrução das duas últimas décadas do século XIX. Um predicado,
verdade seja dita, incrementado pela texturizada fotografia em tons amadeirados
de Kasper Tuxen (Toda a Forma de Amor), impecável ao capturar o reflexo do
tempo e do desgaste impresso nas feições dos envelhecidos atores. No fim, embora
falhe (e gaste tempo demais) enquanto um retrato dos bastidores da produção do
dicionário de Oxford, O Gênio e o Louco compensa quando decide confiar no
potencial humano da história e enxergar no drama dos seus personagens o seu
verdadeiro diferencial. Até porque, cá entre nós, quem é o louco que está
interessado numa cinebiografia sobre a realização de um dicionário. Um mega
dicionário, é verdade, importantíssimo para a língua inglesa e tal, mas ainda
assim um dicionário.
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