A Extrema Direita chegou ao
poder. A França é varrida pelo fascismo. Um estrangeiro em fuga decide usar os
documentos de um escritor morto na busca por um asilo longe dali. Da perda da
identidade, entretanto, nasce um delicado conflito moral e uma relação marcada
pela esperança e pela mentira. Impecável ao escancarar as sequelas íntimas
causadas pela guerra e pela opressão, Em Trânsito revigora o tema ao entregar
uma obra poética e atemporal, um delicado romance dramático em tempos de
insensibilidade. De volta ao gênero após o extraordinário Phoenix (2014), o
inventivo diretor alemão Christian Petzold causa um misto de tensão e desconforto
ao tratar mais uma vez a perda da identidade como uma ferida incalculável,
extraindo o máximo de um reconhecível ‘plot’ ao desconectar a obra de um
contexto histórico. Poderia ser a França invadida pelos nazistas. Poderia ser o
Brasil na Ditadura Militar. Poderia ser a Argentina em meio a sua revolução.
Poderia ser qualquer país atual caso um político da renovada onda extremista
chegasse ao poder. Passado e (infelizmente) presente se confundem numa película
disposta a provocar, disposta a nos lembrar (mais uma vez) o quão implacável
pode ser o efeito da repressão, da xenofobia e da perseguição àqueles que
pensam diferente.
Uma característica pela ousada
proposta narrativa defendida por Christian Petzold. Ao contrário do seu último
longa, ambientado numa França devastada pelo pós-guerra, o realizador alemão
surpreende ao trazer a sua trama para os dias de hoje. Quer dizer, para um
cenário atual. Confesso que fui pego de surpresa quando me deparei com o
primeiro plano aberto do longa. Quando vi uma viatura moderna cortando as ruas,
dispositivos eletrônicos, figurinos contemporâneos. Petzold é astuto ao situar
o longa num universo reconhecível, possível, como se o perigo fosse real. A
ideia é fundir o passado ao presente. Criar um paralelo incontestável. E isso sem
se distanciar tanto do que aconteceu lá atrás. Nos dias de hoje, com vigilância
online e documentos quase impossíveis de serem falsificados, um arco como o do
acuado Georg (Franz Rogowski) iria beirar o inverossímil. Numa sacada genial, porém,
Petzold se aproxima do presente, mas nem tanto, mantendo algumas soluções
típicas dos filmes de guerra clássicos ao brincar com a licença poética, ao
renegar o digital. Os personagens se comunicam através de cartas. O papel era
pesado. Um carimbo poderia mudar tanta coisa... Como disse no parágrafo
anterior, pouco importa o contexto. O drama enfrentado pelas vítimas do ódio e
da repressão pouco mudou desde então. Dentro deste cenário “híbrido”, Em
Trânsito narra a jornada de Georg, um alemão em solo francês que diante da
iminência da guerra decide fugir para Marseille em posse de uma identidade
falsa e a promessa de que poderia embarcar para o México em segurança. Obrigado
a conviver diariamente com a desesperança e a dor daqueles que assim como ele
estavam a um passo em falso de um destino cruel, o furtivo homem decide
intervir quando conhece a enigmática Marie (Paula Beer) e o pequeno imigrante
ilegal Driss (Lillien Batman). Consciente da sua posição de vulnerabilidade,
Georg se arrisca ao criar um elo de afeição e cumplicidade com os dois, sem
sequer desconfiar que a sua mentira logo cobraria um preço caro.
Um extraordinário contador de
histórias, Christian Petzold é o tipo de cineasta que precisa de bem pouco para
fisgar. Uma carta, uma morte, uma oportunidade inesperada. Antes mesmo de
conhecermos melhor o protagonista nós já estamos nos importando com ele. Foi
assim em Fênix, agora Em Trânsito. Por mais que, aqui, as peças custem mais a
se encaixar, o desconforto gerado por essa “fusão” entre passado e presente é proposital,
se tornando mais um dos elementos intrigantes da obra. Não importa quem é o perseguidor.
O fascismo é citado uma única vez pelo texto quase que aleatoriamente. Petzold
não parece interessado em explicar o óbvio. Pouco importa se o algoz da vez é
Hitler, Mussolini, ou um dos representantes da nova extrema-direita. A falta de
um rosto\bandeira atribuída ao inimigo gera suspense, gera aflição. E o
cineasta sabe muito bem como explorar isso. Num primeiro momento o clima de
urgência ganha corpo de maneira natural. Mesmo apenas com informações básicas
sobre Geof, ele é estrangeiro, alemão e está na mira do Estado francês, o
argumento assinado pelo próprio diretor esbanja astúcia ao estabelecer a sua
posição de vulnerabilidade. A identificação vem fácil. Estamos diante de uma
vítima da repressão e é isso que Petzold está disposto a entregar sobre o seu
personagem. Cabe ao público preencher as arestas. Entender as suas motivações.
Enxergar o turbilhão de emoções que só cresce quando ele se vê obrigado a
assumir uma identidade que não é sua. Diante desta proposta, impressiona a
habilidade do realizador alemão em construir o clima de tensão em torno dele. À
medida que a trama avança e os conflitos morais do protagonista passam a se
aflorar, Petzold é cuidadoso ao levantar questões sobre os elementos que o
cercam. Se por um lado o roteiro é de uma franqueza desoladora ao discutir a
posição de fragilidade de outras tantas vítimas da repressão, por outro ele
alimenta as expectativas do público ao não expor logo de cara outros elementos
da sua trama. Quem é o por vezes redundante narrador que surge repentinamente
na trama? Quem é a magnética mulher de preto que ora e vez cruza o caminho de
Georg distribuindo sorrisos à procura de alguém? Existe um intrigante espaço
para interpretações. Algo brilhantemente explorado pelo inventivo roteiro.
O melhor de Em Trânsito,
entretanto, se dá quando Christian Petzold abraça o drama impresso na
excruciante jornada moral do protagonista. Por mais que alguns laços sejam
desenvolvidos com certa pressa, a relação de afeto entre Georg e o pequeno
Driss merecia um tempo de tela maior, o realizador alemão comove ao se
enternecer pela busca destas vulneráveis pessoas em ter alguém em quem confiar.
O que torna compreensível a conexão quase instantânea entre os personagens.
Todos ali estão no mesmo barco. Estão à mercê da sua própria sorte. Na corrida
contra o tempo. A guerra é um inimigo, a perseguição é um inimigo, a solidão é
um inimigo. Eles querem sobreviver e sabem que sozinhos a missão se torna bem
mais difícil. Neste sentido, é interessante ver como Petzold explora a carência
sentimental como um agente catalisador da história. Principalmente no momento
em que a enigmática Marie finalmente tem a sua verdade revelada. É legal ver
como, inicialmente, o cineasta é astuto ao nos provocar quanto a sua presença.
Ela traz consigo uma aura simbólica. A maneira com que ela passa sem ser notada
pela multidão, sempre de preto, sempre apressada, sempre esbarrando e sorrindo dão
a jovem uma representação quase lúgubre. Como se fosse a morte à espreita, confusa
ao se deparar com alguém que não é quem diz ser. Algo que, viagem metafórica à
parte, até faz sentido quando ela e Georg finalmente decidem finalmente se
abrir. Por mais que a atração mútua entre eles salte aos olhos, Petzold renega
as convenções do gênero ao entender que por trás do romance existiam
sentimentos bem mais pesados. Emoções que, no cenário de extrema vulnerabilidade
em que os dois estavam inseridas, não seriam facilmente digeridas e\ou
superadas. Por trás da atração existia a dor, por trás da esperança a culpa, por
trás da paixão o remorso. Um buscava no outro algo que ele não poderia
oferecer. Algo que foi tomado pelo conflito. Que foi repentinamente ceifado.
Uma relação complexa que, graças a magnífica condução de Petzold, causa um
misto de angústia e fascínio até o desconcertante clímax. Um desfecho
totalmente condizente com o cenário em questão e com as sequelas causadas por
ele. No fim, a minha “viagem” sobre a presença dela não estava tão errada
assim.
Impulsionado pelas marcantes presenças
de Franz Rogowski e Paula Beer, magníficos ao exprimir o íntegro senso de
humanidade dos seus respectivos personagens de maneira quase poética, Em
Trânsito é uma obra original, insinuante e provocadora. Embora falte vigor ao
longa em alguns poucos momentos, o que pode incomodar o espectador acostumado a
um conteúdo mais palatável, Christian Petzold compensa ao transformar um
cenário indiscutivelmente reconhecível no palco de um drama que insiste em se
repetir, uma realidade vil em que a morte pode se acontecer de diversas formas e
assumir vários rostos.
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