sexta-feira, 5 de julho de 2019

Blackface, “whitewashing” e a importância de termos uma Ariel negra em A Pequena Sereia


Representatividade. Essa palavra durante muito tempo não fez parte do vocabulário da grande maioria dos produtores de Hollywood. E os motivos são bem óbvios. Um dia depois da Disney anunciar que a atriz Halle Bailey iria viver a Ariel na versão ‘live-action’ de A Pequena Sereia, as redes sociais foram invadidas por usuários “preocupados” com a apropriação étnica desta clássica personagem. Para esses, que se manifestaram com a #NotMyAriel, uma personagem originariamente branca não poderia ser interpretada por uma atriz de outra raça. A grita não foi pela escalação de um rosto praticamente desconhecido, ou pelo fato de Halle ser inexperiente, mas simplesmente por ela ser negra. Uma manifestação inacreditável que, felizmente, foi logo asfixiada pelas manifestações de apoio e entusiasmo quanto a diversificação proposta por um grande estúdio como a Disney. É fato, porém, que esse tipo de reação diz muito sobre o estado das coisas dentro da cultura pop. Não é fácil mexer numa balança que durante tanto tempo foi tão desequilibrada. Por mais que nos últimos anos filmes como Moana, O Despertar da Força, Pantera Negra, Mulher-Maravilha e Corra! ajudaram muito a mostrar a importância da representatividade dentro do ‘mainstream’, movimentos recentes como o Oscar so White comprovam o peso da desigualdade numa indústria que na maior parte da sua história - sejamos bem francos - foi comandada por brancos, pensada por brancos e feita para brancos. 


O que ajuda a explicar, na verdade, a péssima representação dos mais variados grupos étnicos. Em especial dentro dos EUA. Nascido no final do século XIX, o cinema não demorou para se popularizar na América em um contexto extremamente hostil para os negros. No início do século XX, os EUA era um país em sua maioria segregador, seguindo as infames leis de Jim Crow. O racismo era institucionalizado. Os afroamericanos em alguns (muitos) estados não podiam dividir espaço com os brancos, não podiam usar o mesmo banheiro, não podiam transitar livremente, não podiam exercer certas funções, não podiam se manifestar. A violência e a repressão eram rotineiras. A miscigenação era um crime. Neste ambiente absurdamente hostil, a representação do negro em Hollywood ao longo das primeiras décadas do século XX era vergonhosa. Numa época em que somente brancos poderiam atuar nos palcos e nos sets de filmagens, homens e mulheres pintavam os seus rostos de preto para encarnar da pior maneira possível esta etnia. Fiel ao arquétipo propagado na “era Jim Crow”, os personagens negros ou eram submissos, alegres, preguiçosos e ignorantes, ou eram violentos, agressivos, pouco confiáveis e ameaçadores. O blackface surgia para potencializar esta distorcida visão. No cinema, um dos primeiros filmes a explorar esta pesada (literal e simbolicamente) maquiagem foi A Cabana do Pai Tomás (1903). Adaptação da popular obra homônima da escritora abolicionista Harriet Elizabeth Beecher Stowe, o longa (veja aqui) dirigido por Edwin S. Porter e estrelado por atores brancos se sustentou obviamente em estereótipos para contar a história de um escravo negro e da sua família diante dos horrores deste período. Aqui vemos a primeira linha de caracterização citada acima, a teoricamente mais “ingênua”, uma visão subserviente e distorcida sobre um dos períodos mais sombrios da nossa história. Por mais que o longa até tenha os seus lampejos de humanidade, em especial quando o assunto é a figura do bondoso Pai Tomás (Uncle Tom no original), Porter não renega os clichês da época ao tratar os negros como figuras “dançantes”, resignadas e cartunescas.


O pior, porém, ainda estava por vir. Com o infame O Nascimento de Uma Nação (1915), o então aclamado diretor D.W Griffith ultrapassou todos os limites ao glorificar o racismo institucionalizado pelas Leis de Jim Crow. Um verdadeiro crime em formato fílmico. Uma ode aos ideais escravocratas sulistas, o longa (foto acima) subverteu os fatos ao tratar os derrotados na Guerra de Secessão como vítimas, os “ianques” como os nefastos vilões e os negros como uma “subespécie” abominável, violenta e agressiva. Fazendo mais uma vez uso do blackface, Griffith pintou um retrato vergonhoso dos afro-americanos, os tratando com indivíduos quase primitivos e abusadores. Além disso, O Nascimento de Uma Nação chegou ao extremo de tratar a Klu Klux Klan como os verdadeiros heróis da história, um grupo de homens sulistas dispostos a tudo para salvar as donzelas brancas da ameaça negra e evitar o domínio dos vilanescos representantes do Norte. Embora, sob o aspecto narrativo, D.W Griffith tenha tirado do papel uma obra revolucionária, com direito a enquadramentos a frente do seu tempo e uma montagem vanguardista, o fato é que estamos diante de uma produção de embrulhar o estômago, um relato desconcertante de como os negros eram enxergados nos EUA da época. Uma sensação potencializada pelo sucesso comercial que a película fez no seu lançamento. Mesmo sendo tratado publicamente como um filme racista, O Destino de uma Nação faturou impressionantes US$ 10 milhões em solo norte-americano, um valor absurdo diante das cifras conseguidas no período e dos US$ 60 mil investido na produção. Para piorar, relatos dão conta que a obra ajudou a resgatar a imagem da KKK no interior dos EUA, dando nova força a um grupo que sabidamente era reconhecido pelo rastro de sangue deixado na captura\subjugação\assassinato de negros. Griffith se sentiu tão mal com a repercussão da sua obra que, no ano seguinte, lançou o épico Intolerância (2016), uma espécie de tentativa (frustrada) do diretor em reparar o estrago causado pelo seu trabalho anterior. Com um orçamento de US$ 2,5 milhões, um investimento que saiu do bolso do cineasta, o longa revisitou a história tentando mostrar as sequelas causadas pelo racismo, mas, devido a sua complexa abordagem, passou longe do grande público. O resultado foi um fracasso sem precedentes.


O impacto cultural\social de O Nascimento de Uma Nação, felizmente, ajudou a impedir que os afroamericanos fossem outra vez tão mal representados no cinema. O ‘status quo’ dos negros dentro da indústria, entretanto, custou a mudar. Nas décadas seguintes o blackface seguiu sendo utilizado sem grande pudor. O primeiro filme sonoro, o musical O Cantor de Jazz (1927), trouxe Al Jolson como um judeu que se pintava de negro para se apresentar nos palcos norte-americanos. Embora aqui a caracterização fosse assumida pela trama, a visão étnica proposta pelo longa ainda dialogava bastante com a imagem cartunesca criada na era Jim Crown. Uma imagem bem chocante (foto acima). Antes de estrelar o clássico O Mágico de Oz (1939), a legendária Judy Garland também fez um caricato uso do blackface (foto acima) em Diabinha de Saias (1936), num ‘plot’, verdade seja dita, muito semelhante ao de O Cantor de Jazz. Ela, aliás, não foi a única das “grandes” de Hollywood a aceitar se passar por uma pessoa negra em seus filmes. A prodígio Shirley Temple, por exemplo, usou o blackface em A Pequena Rebelde (1935), mais um filme considerado racista pela forma com que trata os personagens de raiz afro como tipos alegres e festivos numa tentativa de atenuar os horrores da época da escravidão. Outro que se pintou de negro foi o gênio Fred Astaire em Ritmo Louco (1936). Na ingênua tentativa de homenagear o grande dançarino Bill Robinson, o astro de O Picolino (1935) recebeu críticas pela apropriação étnica e o que era para ser uma reverência se tornou um motivo para constrangimento.


Mesmo com o sucesso de E o Vento Levou (1939) e o triunfo da atriz Hattie McDaniel, a primeira mulher negra a conquistar um Oscar, o blackface seguiu diminuindo a presença de atores afro-americanos em Hollywood. O que fica bem claro quando vemos nomes do quilate de Joan Crawford e Laurence Olivier se pintarem de preto em obras como o detonado Se Eu Soubesse Amar (1953) e o - pasmem! - aclamado Othello (1965). Sim, no auge do movimento racial, na luta pela igualdade e direitos civis nos EUA, um astro branco de Hollywood assumiu o blackface (foto acima) para viver um personagem negro numa adaptação de William Shakeaspeare. E foi indicado ao Oscar de Melhor Ator por isso... Uma rotina que, infelizmente, seguiu se repetindo dentro da indústria até os anos 1980. Embora dentro de um contexto satírico (mas não menos perigoso), filmes como Uma Escola Muito Louca (1986) usaram um ator branco travestido de negro para propor uma pueril reflexão sobre o preconceito (WTF!) enfrentado pelos afro-americanos num ambiente universitário. Esqueça a representatividade. Até um filme sobre o racismo era até bem pouco tempo estrelado por um elenco majoritariamente caucasiano. De volta aos anos 1960, com o fortalecimento dos grupos em defesa da identidade afro-americana, o blackface começou a (ufa!) cair em desuso. Os demais grupos étnicos, entretanto, passaram a sofrer mais. Indígenas, Latinos e Asiáticos, em especial, começaram a sentir na pele a péssima representação em Hollywood. Surgia então o yellowface, o redface e o latinface.


Consciente das mudanças sociais no país, a indústria do cinema tratou de dar relevância a outros grupos étnicos. O problema, porém, era que aqueles que faziam a engrenagem girar não estavam interessados em dar espaço a rostos fora dos “padrões” estabelecidos até então. O resultado foi a escalação de atores brancos na pele de mexicanos, japoneses, nativo-americanos. Embora de forma menos cartunesca do que na fase áurea do blackface, o uso de astros do cinema brancos pintados se tornou igualmente comum em grandes produções. O que falar, por exemplo, de Burt Lancaster como um indígena em O Último Bravo (1954); do astro do western norte-americano John Wayne como o mongol Gengis Khan em Sangue de Bárbaros (1956); do ícone Marlon Brando como japonês em Casa de Chá do Luar de Agosto (1961); do alemão Henry Brandon como um vilanesco indígena no aclamado Rastros de Ódio (1956); do legendário Charlton Heston como um detetive mexicano no fantástico A Marca da Maldade (1958); do comediante nova-iorquino Mickey Rooney vivendo um caricato chinês no aclamado Bonequinha de Luxo (1961); da californiana Natalie Wood como uma imigrante latina no popular Amor, Sublime Amor (1961); do britânico Alec Guiness como um árabe no épico Lawrence da Arábia (1962), do inglês Peter Sellers com um indiano em Um Convidado Bem Trapalhão (1968). Exemplos não faltavam. Eu poderia gastar mais alguns parágrafos enfileirando nomes e mais nomes no Cinema e na TV. Vide o brilhante tweet (veja aqui) do crítico de cinema Pablo Villaça.

O fantasma do “whitewashing”


Aos poucos, porém, os demais grupos étnicos começaram a exigir uma representação mais adequada e respeitosa. Assim como aconteceu com o blackface, o yellow\latin\redface passou a causar constrangimento junto aos produtores. Ter atores pintados em cena começou a soar como algo ridículo. Com a chegada dos anos 1970 e o fortalecimento de correntes cinematográficas alternativas, entre elas a Nova Hollywood e o Blacksploitation, o estilo de vida urbano passou a ser levado para as telas grandes de forma mais verossímil. No ‘mainstream’, porém, a desigualdade étnica ainda era brutal. Após anos trabalhando com ‘castings’ majoritariamente brancos, a falta de estrelas negras, latinas e asiáticas era gritante. E Hollywood não sabe viver sem os seus astros. O que vimos então foi o fortalecimento do “whitewashing”, uma espécie “lavagem branca”. Sem a intenção de valorizar a diversidade, a indústria do cinema norte-americana optou pelo caminho mais fácil. Mais simples do que pintar atores, a alternativa foi abraçar sem qualquer pudor a apropriação étnica\cultural dos personagens. Repetindo o que havia acontecido lá atrás, em 1963, quando a inglesa Elizabeth Taylor foi escalada para interpretar a icônica rainha egípcia no épico Cleópatra, Hollywood passou a gradativamente dar de ombros para a etnia dos protagonistas. A origem\imagem deles passou a influenciar bem pouco na escalação do elenco. O ‘star power’ era - como de costume - o mais importante. Algo que, por exemplo, ficou bem evidente quando vimos a estrela ítalo-americana Al Pacino escalada para viver um mafioso cubano no fantástico Scarface (1983). Um sotaque mais forte e um bronzeamento natural já foram o bastante para que Brian de Palma encontrasse neste fantástico ator os ingredientes necessários para dar vida a um protagonista latino. O mesmo, aliás, aconteceu nos anos seguintes com Fisher Stevens como um cientista indiano em Um Robô em Curto Circuito (1986), com Catherine Mary Stewart como uma personagem originalmente negra em Nightflyers (1987), com o irlandês Daniel Day-Lewis como um descendente de indígenas em O Último dos Moicanos, com as norte-americanas Meryl Streel e Glenn Close na pele de chilenas em A Casa dos Espíritos (1993), com o norte-americano Casper Van Dien como um personagem originalmente filipino em Tropas Estrelares (1997), com a nova-iorquina Jennifer Connely como uma salvadorenha em Uma Mente Brilhante (2001). A etnia passou a ter pouca importância.


Uma realidade que, infelizmente, só viria a piorar com os anos 2000. É duro pensar que somente agora os executivos de Hollywood começaram a tratar a diversidade e a questão da representatividade como algo urgente. Que até bem pouco tempo era comum ver o norte-americano Josh Hartnett como um descendente de esquimós em 30 dias de Noite (2007), Angelina Jolie como uma afro-cubana em O Preço da Coragem (2007), o britânico Jim Sturgress interpretando um personagem que deveria ser asiático em 21 (2008), o canadense Justin Chatwin como um herói originalmente nipônico em Dragonball: Evolution (2009), o caucasiano Jake Gyllenhaal como um persa em O Príncipe da Pérsia (2010). Alguns casos recentes, porém, ligaram o sinal de alerta. Um dos maiores fracassos comerciais da história recente do cinema, O Cavaleiro Solitário (2013) foi destruído pela crítica muito em função da escalação de Johnny Depp (foto acima) como o indígena Tonto. No ano seguinte a radiante Emma Stone se sentiu obrigada a pedir desculpas por ter interpretado uma personagem metade chinesa, metade havaiana em Sob o Mesmo Céu (2015). Algo semelhante, aliás, aconteceu no esnobado Pan (2015), quando a talentosa britânica Rooney Mara foi muito questionada por viver a indígena Princesa Tigrinha.  O que falar então do fiasco chamado Deuses do Egito (2016), um blockbuster que, apesar do título, não trouxe um personagem de ascendência egípcia seques no elenco principal. Coincidências a parte, todos as obras citadas acima se revelaram verdadeiros fracassos nas bilheterias, comprovando que o público estava de olhos bem abertos para esse grande problema. Nem mesmo quando o ‘whitewashing’ parecia honesto, como na escalação da estrela Scarlett Johansson na adaptação do mangá nipônico Ghost in The Shell (2017), o resultado foi diferente. A falta de diversidade no cinema ‘mainstream’ era um problema que não podia mais ser varrido para debaixo do tapete.


Com o Oscar so White e a ausência de realizadores negros por dois anos seguidos (2015-2016) entre os indicados ao Oscar de Atuação, a reação veio de baixo para cima. Atores e atrizes começaram a pressionar os produtores. Àqueles que detinham o capital. O poder da mudança. A temporada de premiação passou a ganhar um tom genuinamente político. Nos anos seguintes o que vimos foi uma verdadeira (e bem-vinda) corrida contra o tempo perdido. Em pouco menos de cinco anos houve uma explosão de filmes representativos. De Mad Max: Estrada da Fúria à Star Wars, de Pantera Negra à Capitã Marvel, de Doentes de Amor a Podres de Ricos, de Corra! a Us, de Moana à Pequena Sereia. Mexer em uma estrutura desigual tão enraizada, porém, pode ser bem complicado. Por mais que a maior parte do público tenha recebido com entusiasmo estas produções, uma minoria ruidosa (e infelizmente ainda expressiva) tem encontrado nas redes sociais o espaço para despejar a sua toxicidade quanto a esta transformação no ‘status quo’ da indústria. Antes mesmo do seu lançamento, por exemplo, filmes como Caça-Fantasmas (2016) sofreram um pesado ‘hate’ dos usuários nos agregadores de conteúdo. Atrizes como Daisy Ridley e Kelly Marie Tran, ambas da nova saga Star Wars, chegaram ao extremo de fecharem as suas contas nas redes sociais devido aos seguidos ataques. Brie Larson, a Carol Danvers de Capitã Marvel, mostrou coragem ao encarar de frente todos aqueles que distorciam as suas palavras e a sua pública defesa da diversidade em Hollywood. Uma sequência de manifestações vergonhosas que ajudam a entender a raiz do #NotMyAriel. Contrariando um século de desigualdade, racismo e má representação, só agora, na segunda década do século XXI, vemos a representatividade sendo tratada com a devida atenção. Só agora, após anos de apropriação étnica, vemos personagens de origem branca ganhando uma “roupagem” diferente com o intuito de alcançar uma nova parcela do público. Um grupo que durante muito tempo teve que se reconhecer em heróis brancos, princesas pálidas e sereias ruivas. Já era hora deste cenário mudar. 

4 comentários:

Unknown disse...

Uma perfeita análise sobre como o racismo e exclusão tem raízes profundas na sétima arte. Parabéns.

thicarvalho disse...

Sem dúvida alguma. Valeu pela visita.

Rebeca disse...

Muito bom! Passei aqui para saber um pouco mais sobre representatividade e citar a Ariel negra na minha redação. Obrigada pelo texto!

thicarvalho disse...

Valeu Rebeca. Espero que o texto tenha ajudado. Sucesso no seu trabalho.